Saúde Mental e Gênero – Novas perspectivas e formas de tratamento

Ao longo dos anos, a relação entre gênero e saúde mental tem sido cada vez mais estudada como um elemento importante na compreensão do surgimento de sofrimento psíquico entre homens e mulheres (desculpas antecipadas: por falta de tempo e de estudos, não conseguiremos incluir os LGBTQ+ nesse primeiro artigo) ao redor de todo o mundo.

A ideia por trás desses estudos dizem respeito aos conceitos formulados conforme a história sobre homens e mulheres, a  padrões de comportamento e atitude que alocam ambos os gêneros em “caixas invisíveis” e fazem com que outros comportamentos, rompendo essa lógica, sejam causadores de problemas ou patologias.

Busca-se por meio desse novo artigo elucidar essa questão tão importante e contribuir um pouco mais sobre um tema que recorrentemente tem surgido em nossa sociedade e também em pesquisas envolvendo a saúde mental, a psicologia e outras áreas da ciência de grande importância.

O conceito de gênero: um pouco sobre seu surgimento e história

O conceito de gênero surge a partir do movimento feminista (1970) como uma categoria de descrição e análise de interações sociais entre homens e mulheres, contrapondo-se ao determinismo biológico histórico relacionado a termos como “sexo” e “diferença sexual”, que reduziam os sujeitos a diferenças corporais.

Há nesse momento uma grande mudança no sentido do termo “gênero”, que de algo referente ao estudo das mulheres e de suas particularidades, transforma-se cada vez mais em um termo relacional – representando as “relações de gênero” -, denotando assim valores e papéis sociais associados a homens e mulheres (Cazares, 2008 apud Zanello e Silva, 2012).

As relações de gênero seriam, em princípio, relações permeadas de poder. Em nossa cultura, o gênero estaria marcado pelo sistema patriarcal das sociedades ocidentais, em que a mulher, fatalmente, é historicamente colocada à margem em diversas situações, pautas e lugares comuns do convívio social (Zanello e Silva, 2012).

Em pesquisas realizadas há alguns anos atrás (Zanello e Silva, 2012), procurando-se sobre categoriais socialmente valorizadas em cada sexo, constatou-se entre as mulheres comportamentos relacionados a abnegação e renúncia de si mesma e a busca por padrões estéticos, e entre os homens, alta virilidade sexual e ideais de trabalho referenciando-os às figuras de “homem de verdade” e “provedor”.

A conclusão em termos psicológicos para essas categorias diz respeito aos papéis que elas tem como referência nos julgamentos que homens e mulheres tem sobre si mesmos, afetando a autoestima, a estabilidade emocional e ao realce de traços narcisistas nesses sujeitos; como se esses elementos fizessem dos homens mais homens e das mulheres mais mulheres.

Nesse sentido, refletir acerca do gênero seria desnaturalizar essas diferenças tidas como intrínsecas, cujo o discurso biologizante levaria à sua retificação e a presunção de uma inevitabilidade inexistente, deixando questões sociais e relacionais à margem, que em muitos casos levam a fragilidades psicológicas.

De acordo com Zanello e Silva (2012): “reler a saúde mental sob o viés das relações de gênero leva, portanto, a outras reflexões e à compreensão do quanto a loucura pode ser engendrada (criada; construída)”.

O gênero como janela para o entendimento de questões psicológicas

Sendo o conceito de estereótipo uma construção social enraizada socialmente, sua reprodução sustentaria a desigualdade e a relação de poder hierárquica entre os gêneros, reafirmando uma serie de valores sociais mantenedores (e contraditórios) de privilégios e degradações, como se observa na relação homem e mulher (Cazares, 2008 apud Zanello, Fiuza e Costa, 2015).

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Em outros termos, nos atendo ao que queremos falar, a experiência subjetiva de “ser um homem” ou “ser uma mulher” seria alterada em conformidade com valores culturais construídos em sociedade, e estes atuariam nas interpretações dos indivíduos sobre si mesmos e sobre os outros, bem como na esfera do sofrimento psíquico condicionado (Zanello, Fiuza e Costa, 2015).

A ideia exposta diz respeito a noção de Santos (2009 apud Zanello, Fiuza e Costa, 2015), de que aquilo que parece ser algo extremamente individual, ou seja, a vivência de um conjunto de mal-estares no âmbito subjetivo, expressaria, na verdade, regularidades que seriam moldadas por uma dada configuração social.

No caso da mulher, sua imagem se confunde com a de padrões socialmente criados de mulher, mãe, beleza e muitos outros. Veicula-se a noção de que esse padrão ideal é acessível a todas as mulheres e que, portanto, aquela que não se encontra dentro dele é julgada por um crivo moral, considerada inferior, “menos mulher” (Zanello, Fiuza e Costa, 2015).

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A exigência social para que cumpram este padrão preestabelecido aprisionaria as mulheres ao desejo do outro, silenciando-as em uma vivência de impotência, apagada, algo que fatalmente se traduziria em dificuldades psicológicas, em quadros de ansiedade e depressão, e na falta de cuidados conscientes dado o modelo biomédico e medicamentoso.

No caso do homem, o ideal valorizado em “um homem de verdade” seguiria uma lógica frágil, de virilidade, que se firmaria em duas vias normativas: pelo exercício ativo de sua sexualidade (“pegador”), mas também pelos aspectos relacionados à produtividade laboral, ao trabalho e o status enquanto alguém bem sucedido (Zanello e Gomes, 2010).

Essa exigência para que os homens cumpram ou realizem sua “essência” masculina seria motivadora de tensões e conflitos permanentes, uma vez que “os homens acabariam assim por serem oprimidos por sua própria opressão”, adoecendo nesse lugar daquele que tem que dar conta de tudo e a qualquer custo (Zanello, Fiuza e Costa, 2015).

Para Santos (2009), sendo assim, a debilidade psíquica masculina estaria vinculada ao fracasso social, considerando que o homem psicologicamente “doente” seria excluído da esfera pública e confinado ao espaço privado, perdendo seu lugar como provedor e, como acontece, sua virilidade sexual, dada a medicalização dos problemas do dia-a-dia.

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Questões como a pobreza, a analfabetização, a violência (física, psicológica, sexual), a renda mensal e outras que excedem a questão de gênero e ao mesmo tempo fundamentam a sociedade de forma fatalista, aparentemente não tendo causas concretas, protagonizam também a fragilização da psique.

O olhar clínico que avalia o homem e a mulher

Médicos, psicólogos e psiquiatras não estão isento dos juízos de valor socialmente construídos pelas sociedades patriarcais ao redor do mundo e especialmente no Brasil, e reforçam os papéis sociais atribuídos aos gêneros por meio do que dizem, de como analisam questões e de como constroem diagnósticos, dependendo de seus fundamentos.

Nossa visão de mundo, dizem Zanello e Silva (2012), está marcada também pelos valores de gênero que adquirimos conforme crescemos, e estes se tornam um fator determinante na atividade analítica em que se resume a leitura de alguns sintomas e comportamentos. Tendemos a julgar e avaliar a partir de certos padrões ideais, inscritos e constituídos culturalmente.

Dando o exemplo da “mulher que chora” e do “homem agressivo”, ambos socialmente construídos e fixados, os autores apontam para a existência do que denominam como um certo nível de tolerância para denominar comportamentos como “choro desproporcional” e “irritabilidade” entre homens e mulheres, conforme esses padrões.

A ideia consiste na falsa ideia, construída com base na concepção “tradicional” de gênero, de que o choro desproporcional seria algo comum e inerente as mulheres, enquanto a “irritabilidade”, algo comum e inerente aos homens. Nesse sentido, as mulheres estariam de um lado do espectro de transtornos e os homens, do outro.

Os autores, diante do que colocam, afirmariam que o que se percebe em diversas pesquisas seria uma tendência à hiperdiagnosticação ou subdiagnosticação de certos transtornos e dificuldades psicológicas entre mulheres e homens, em decorrência desses estigmas e preconcepções.

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Em conclusão, apontam que, se a manifestação do sintoma é algo preconcebido, há que se repensar a expressão dos transtornos e a necessidade de que se crie critérios diagnósticos diferentes para homens e mulheres; critérios que correspondam aos papéis e valores de gênero, levando em conta questões sociais e da vida de cada um (Zanello, Fiuza e Costa, 2015).

Ampliando a concepção da dor psíquica por meio do gênero

A partir dos dados levantados e de todos os comentários expostos acima, é importante termos em mente a ideia central de todo o debate, que diz respeito ao modo como gênero, valores e idealizações construídas socialmente, participam da configuração e constituição do sofrimento psíquico.

Ao apontar os estereótipos existentes entre homens e mulheres, corrobora-se com a ideia de outros textos e pesquisas de que, ao tomar como ponto central de julgamentos e valorações pessoais ideias conservadores a respeito dos supostos “papéis” de gênero, são prejudicadas as pessoas que sofrem e os tratamentos realizados em benefício delas.

Tendo em vista que o sistema de atenção à saúde mental pode (…) estigmatizar as condutas desviantes ao modelo patriarcal (Zanello, 2014), ao se questionar essa prática retificadora, a articulação com a análise das relações de gênero nos autoriza a desconstruir um discurso cientificista e nos permite restituir as vozes dos ditos loucas e loucos, escutando as especificidades da cultura nessas falas. (Zanello, Fiuza e Costa, 2015).

“Trata-se de refletir acerca das consequências que a adoção de um pressuposto epistemológico feminista pode aportar para o campo da saúde mental, o que implica em mudanças que vão desde a escuta e o acolhimento ao diagnóstico e estratégias de intervenção e de tratamentos para além do uso de psicotrópicos” (Zanello, Fiuza e Costa, 2015).


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