Vulnerabilidade Social – Como a saúde mental pode ajudar na vida de pessoas vulneráveis socialmente?

Como se sabe, grande parte da população brasileira vive à margem da sociedade, o que corresponde, fatalmente, à vivência de condições de vulnerabilidade social permeadas pela falta de acesso à educação, à saúde e outros elementos vitais para vida de qualquer pessoa.

Tratar da relação entre vulnerabilidade social e saúde mental é tratar sobre a vida de pessoas vulneráveis socialmente. Nesse contexto, questões como cuidado, reinserção social, família, resiliência e estrutura tornam-se elementos fundamentais da conversa.

São temas complexos, que envolvem a vida de milhões de pessoas – e não apenas no Brasil –, assim como saberes coletivos e individuais a respeito delas que dão tonalidade as dificuldades pelas quais elas passam.

No artigo de hoje, ao tentarmos adentrar a temática vulnerabilidade social e saúde mental, buscamos elucidar alguns conceitos, entender algumas ideias de enfrentamento e construir reflexões que possam se transformar em formas de apoio para todos aqueles que precisam dessa ajuda no mundo.

Vulnerabilidade social: um conceito, diferentes problemas

Em 1993, como nos dizem Sanchez e Bertolozzi (2007), dentre algumas ideias existentes, Watts e Bohle proporiam para conceituar a vulnerabilidade social uma teoria que a dividia em três principais elementos: entitlement, empowerment e política econômica.

A vulnerabilidade social seria assim definida como uma relação entre eles, sendo entitlement vinculado ao direito das pessoas; empowerment, à participação política e institucional das pessoas; e a política econômica, à organização estrutural-histórica da sociedade, pensando o acesso à renda.

Para os autores, a ideia de vulnerabilidade social, que então se relacionava à pobreza, às crises econômicas e ao nível educacional de cada pessoa, seria designada de maneira específica para cada indivíduo, região e grupo social, com base nos critérios definidos por eles e nas pesquisas realizadas por ambos.

Especificamente à área da saúde, o conceito de vulnerabilidade social como ferramenta de análise emergiria e seria utilizado apenas no início da década de 1980, dada a epidemia da AIDS ao redor do mundo e a necessidade de entende-la enquanto um problema grave e público.

Internacionalmente, algumas teorias ganhariam cada vez mais corpo e passariam a ser cada vez mais apropriadas também pela saúde, ao passo em que exaltariam características sociais e multifatoriais das problemáticas encaradas pelas pessoas em suas vidas e as colocariam como elementos fundamentais do entendimento.

Dentro desse contexto, Delor e Hubert (2000 apud Sanchez e Bertolozzi, 2007) propõem que problemas relacionados à saúde fossem analisados de acordo com três dimensões que consideravam fundamentais para tal: a trajetória social, as interações sociais e o contexto social.

A trajetória social vinculava-se às diferentes etapas da vida de uma pessoa e as condutas assumidas por ela. A interação, voltava-se à relação entre os indivíduos. E o contexto social, à incorporação de fatores econômicos, políticos e culturais de uma dada sociedade à essa mesma vida.

A ideia final ao fim das análises – e que permeava outros modelos de análise – era de que se apresentassem a construção de processos de identidade e de vulnerabilidade social dos indivíduos estudados, que acabavam focando mais o indivíduo do que sua infraestrutura ou formas de apoia-lo na prevenção de possíveis faltas e doenças.

Seguindo na história, um novo marco conceitual, ao menos no Brasil, surge com as proposições de Ayres et al. (1999) ao final da década de 90, descrevendo que um novo modelo de vulnerabilidade social deveria levar em conta três elementos fundamentais que aprofundavam a visão teórica e as capacidades analíticas até então designadas.

A ideia, que não tinha mais como foco apenas o estudo e a orientação ao indivíduo, estava baseada na estrutura de relações entre as noções de componente individual, componente social e componente programático, que significariam as possibilidades da pessoa em relação a seus problemas.

Em síntese, o componente individual significava as informações e a capacidade de utiliza-las; o componente social, a obtenção dessas informações e a capacidade de busca à segurança e modos de proteção e prevenção; e o componente programático, à qualidade e ao funcionamento dos serviços aos quais teria acesso.

Nesse sentido,  o significado do termo vulnerabilidade estaria vinculado à chance de exposição das pessoas ao adoecimento e a falta, como resultante de um conjunto de aspectos que, ainda que se refiram imediatamente ao indivíduo, o recolocariam na perspectiva de seu relacionamento com o social e a comunidade (Sanchez e Bertolozzi, 2007).

Ainda que novas discussões tenham surgido, esta base se faz presente na medida em que iniciou a proposição de modelos que auxiliassem na construção de políticas voltadas às necessidades dos seres humanos, no trabalho com as comunidades e na realização de descrições sobre as condições dos grupos sociais, de maneira participativa.

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Atualmente, mesmo em concepções diferentes, o conceito de vulnerabilidade social é uno entorno de entendimentos como processos de exclusão, discriminação e enfraquecimento de grupos sociais e seus indivíduos, sendo capaz, finalmente, de elucidar necessidades históricas que antes não pareciam tão evidentes.

Reflexões acerca da relação saúde mental e vulnerabilidade social

Quando estamos diante de temas que envolvem seres humanos, como no caso da saúde mental e da vulnerabilidade social, temos que estar atentos aos limites que teorias e suposições devem ter ao tentarem se apropriar da realidade através de nós mesmos, dada a complexidade inerente a nossas vidas.

Valorizando uma perspectiva construtivista e humana em detrimento de uma perspectiva biologizante, no sentido de construir percepções relacionadas a diversidade de elementos existentes na vida, levando em conta nossas singularidades, acreditamos estarmos mais próximos da subjetividade e da integralidade de nossas experiências.

Queremos dizer que, se tratando de saúde mental e vulnerabilidade social, é importante trabalharmos com perspectivas que permitam uma aproximação com o fenômeno do sofrimento mental sem aprisioná-lo em categorias, permitindo maior flexibilidade e diversidade, tanto na compreensão quanto nas propostas de intervenção (Onocko Campos et al., 2014).

A relação entre ambas deve começar daí. A ideia que se descreve é de que para se compreender a vulnerabilidade social, igualmente à saúde mental, é necessário ampliar nosso olhar e sair do plano individual, para entendermos que ambos os temas pressupõem percebe-los também de acordo com o plano coletivo.

De acordo com Onocko Campos et al. (2014), faz-se importante nesse sentido que reconheçamos elementos dessa relação, como os territórios mais vulneráveis por exemplo, não somente com as negatividades que lhe são inerentes, mas também com certa potência para a construção de novas relações de cuidado.

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Este aspecto seria fundamental para a discussão proposta pelos autores, na medida em que possibilitaria a mudança e o enxergar de possibilidades de produções singulares na relação entre a área da saúde e saúde mental e a população que vive em condições precárias.

Em uma sociedade permeada pelo empobrecimento subjetivo, estando a saúde psicológica completamente ligada à nossa capacidade de construir laços sociais, tem-se que outra possibilidade importante e necessária está na estruturação de espaços e serviços de acolhimento que permitam às pessoas a criação de sentidos próprios.

Nesse sentido, a intenção seria trabalhar com um conceito de saúde mental que possibilitasse liberdade ao sujeito, de modo que ele pudesse dialogar com as diversas instâncias sociais e com seus pares, sem submeter-se totalmente a um discurso normativo, restando espaços para sua singularidade e para seu desejo aparecer (Onocko Campos et al., 2014).

Dessa maneira, a aproximação entre vulnerabilidade social e saúde mental, como propõem os autores, deveria ser trabalhada com elementos que extrapolassem o discurso técnico-científico tradicional, incorporando outros saberes ligados as pessoas que seriam afetadas pelo sofrimento.

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Sendo assim, o papel do profissional técnico de saúde teria que ser também repensado, saindo do lugar tradicional que seria de imposição de uma certa lógica, para transformar-se numa espécie de mediador entre comunidade e recursos da sociedade no processo de construção da saúde (Ayres, 2003 apud Onocko Campos et al., 2014).

Direitos humanos, saúde mental e vulnerabilidade social: uma relação essencial

Baseando-se nas principais teorias a respeito do tema, Ventura (2017) coloca a vulnerabilidade social como um elemento que surge da relação indivíduo-coletividade e que sinaliza condições sociais que se alteram, construídas com base em relações de poder.

Sob essa linha de pensamento, a autora declara também que a vulnerabilidade pode relacionar-se diretamente à deterioração de direitos sociais e civis, resultando na fragilização da cidadania dos indivíduos enquanto membros da sociedade.

Pensando na temática dos grupos, sabemos que alguns tornam-se mais vulneráveis do que outros em decorrência de desafios comuns relacionados à sua posição social e econômica, ao apoio social que recebem e às condições de vida compartilhadas por seus membros.

Dentre esses desafios, estão: o enfrentamento de estigma e discriminação; a vivência de situações de violência e abuso; a restrição ao exercício de direitos civis e políticos; a exclusão de participação na sociedade; o acesso reduzido aos serviços de saúde e educação; e a exclusão de oportunidades de geração de renda e trabalho. (Ventura, 2017).

Estes fatores interagiriam entre si, levando à diminuição de recursos e ao aumento da marginalização e vulnerabilidade social das pessoas afetadas por eles, algo que traria dificuldades a todas as áreas de suas vidas, atestando a complexidade de tamanho problema.

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Indo em direção à saúde mental, a autora ressalta, a princípio, a importância em reconhecer a vulnerabilidade individual, social e programática relacionada às pessoas vivendo sob transtornos mentais ou sob o uso abusivo de drogas, como forma de avaliar o grau de restrições ao cumprimento de seus direitos civis, sociais e políticos.

Nessa linha, tornar-se-ia possível classificar as dificuldades de acesso aos serviços de saúde e ao enfrentamento de barreiras sociais ao acesso à educação e a oportunidades de trabalho vividas por essas pessoas, de forma a preparar, nesse caso, profissionais e cuidadores, para que os ajudem também a lideram com esses elementos.

De acordo com Ventura (2017), a vulnerabilidade social teria o poder de levar à deterioração da saúde mental de uma pessoa, a medida que estigmas e discriminações levariam a uma baixa na autoestima, a uma diminuição da autoconfiança, a uma redução das motivações e a uma menor esperança no futuro.

O isolamento, em conjunto com a negação de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais do ser humano, seria outro fator importante de risco promovido pela marginalização da vida, que unida a poucas possibilidades de acesso a serviços diversos, ocasionaria também ao agravo desses sofrimentos.

Diante do exposto pela autora, tem-se que parte da solução estaria na realização de ações e práticas embasadas nos princípios estabelecidos por instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos das pessoas, nesse caso, vivendo sob sofrimentos de natureza psicológica.

A ideia, nesse sentido, seria a de integra-los – os princípios – às políticas, planos e estratégias intersetoriais nacionais, visando a melhoria das condições de vida deste e de outros grupos vulneráveis da população, estimulando sua conscientização e autonomia, e possibilitando a construção compartilhada de experiências positivas de vida (Ventura, 2017).

A partir dessas colocações, enxerga-se, mais uma vez, a possibilidade de conquista de autonomia por parte das pessoas, que se expressariam na capacidade de poder dizer e agir, assim como pelo acesso e cumprimento de direitos tradicionalmente negados a elas vivenciando transtornos mentais.

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A utilização do referencial dos direitos humanos como base para o diálogo e mobilização das pessoas com transtornos mentais e usuários de drogas, em conjunto com outros atores sociais, pode ser um mecanismo para que estas pessoas lidem com sua própria vulnerabilidade, apropriando-se de sua realidade e criando condições para conscientemente agirem e a transformarem (Ventura, 2017).

Vulnerabilidade e resiliência: a capacidade de superar dificuldades

De acordo com Malagón-Oviedo e Czeresnia (2015), uma situação de vulnerabilidade inscreve a possibilidade de trajetórias individuais ou grupais conduzirem a desenlaces indesejados. Mas não existiria uma relação causal e mecânica entre uma situação de vulnerabilidade e processos de fragilização.

A ideia passada consiste no exemplo de que uma doença considerada simples, como uma gripe comum, pode causar, anualmente, um número considerado alto de mortes; enquanto, ao mesmo tempo, uma pessoa com deficiência física pode construir suas ferramentas, novas perspectivas, se adaptar, e viver feliz.

Diante disso, como nos descrevem os autores, fragilidade e resiliência coexistem. Uma operaria como condição de possibilidade da outra, pertencendo ao mesmo nível de realidade, assim como sendo possíveis para diferentes situações e diferentes circunstâncias de vida.

Na literatura, o termo ‘resiliência’ tem diferentes classificações. Apresenta-se conceituado como: suporte social, fatores protetores, estresse, adaptação, superação, ajuste, capacidade de resistência e tantos outros.

Mas o que seria específico da resiliência, seria sua relação com a capacidade afirmativa dos seres humanos, enquanto assistentes de si mesmos, criadores de caminhos únicos e subjetivos, dentro dos limites que as condições de vida e as circunstâncias vividas permitem (Malagón-Oviedo e Czeresnia, 2015).

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Em resumo, a visão que se espera transmitir com essas colocações diz respeito ao entendimento de que ser saudável, também, significa ter a capacidade de ser resiliente. E se tratando de saúde mental e vulnerabilidade social, esse é um ponto que deve estar sempre presente nas relações de cuidado estabelecidas.

Isso significa, se tratando de pessoas, que elas tenham o poder de dizer, o poder de atuar, de participar e de intervirem no curso de suas próprias vidas; que tenham a capacidade de agência preservada, liberdade e assegurados seus direitos de serem e de terem acesso aos elementos fundamentais da vida.

Apesar das diferentes circunstâncias existentes, todos nós podemos superar nossas enfermidades e dificuldades. Nós temos essa força dentro de nós, que caminha ao lado de nossas fragilidades. Encontrando o caminho e tendo o apoio que tanto exigimos, as pessoas conseguirão alcançar seus estados de bem estar. Nós acreditamos nisso.



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