O passado, presente e futuro da saúde mental infantojuvenil no Brasil

A saúde mental infantojuvenil é um tema que vem ganhando cada vez mais destaque desde o começo do século XXI. E, se hoje temos leis e garantia de direitos para as crianças e adolescentes, é porque muitos conflitos ocorreram para que fosse necessário confirmar essa ideia.

Ao longo de suas pesquisas, a psicanalista e doutora em saúde mental pelo Programa de Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2012), Maria Cristina Ventura, desenvolveu um estudo importantíssimo sobre o passado da saúde mental infantojuvenil no Brasil.

Assim, ao longo desse artigo vamos explorar os temas e os estudos feitos pela pesquisadora para delinear a trajetória da saúde mental infantojuvenil enquanto preocupação dos órgãos públicos do governo.

Veremos as estratégias políticas do passado, presente e as perspectivas para o futuro.

Portanto, acompanhe a postagem e participe dessa discussão de fundamental importância para que o cuidado da saúde mental infantojuvenil seja promovido e defendido pela nossa sociedade. Acompanhe:

Contexto

Ao longo de toda a História Moderna, as crianças e adolescentes foram considerados como “menores”, julgados como incapazes de decidirem por conta própria sobre àquilo que querem.

Assim, até atingirem a “maioridade”, as crianças e adolescentes ficam sob a tutela de seus pais, responsáveis por decidirem o que é melhor para a vida de seus filhos e filhas.

Porém, se por um lado a tutela familiar é de extrema importância para que a criança possa viver suas fases iniciais de vida, outros aspectos e outras instituições são, também, importantes para que crianças e adolescentes possam desenvolver-se na sociedade.

Mas, acontece que, por muito tempo e em quase todos os lugares do mundo, a responsabilidade para o cuidado de crianças e adolescentes ficou restringida apenas à esfera familiar. E, dessa relação de cuidado exclusivo, decorreram alguns problemas.

Porque, ao considerar crianças e adolescentes como “menores que não estão prontos para assumir responsabilidades sociais”, a família é quem passa a responder pelas ações do sujeito.

E, assim, sendo os únicos responsáveis pelo cuidado, ações, relações e tutela da criança, a família (principalmente os núcleos mais centrais) acaba por estabelecer uma relação de posse.

Assim, qualquer tratamento e cuidado, por mais violento que pudesse ser com a criança, era facilmente justificado com a frase: “O(a) filho(a) é meu e eu educo da maneira que eu quiser”.

Porém, esse tipo de pensamento e a ausência de problematização das relações familiares geraram sofrimentos constantes para a vida de muitas crianças e adolescentes.

Porque, por mais que a família seja símbolo de cuidado, carinho, amor e segurança, há muitos núcleos familiares que são mais perigosos do que imaginamos.

Tanto que, apenas no primeiro semestre de 2021, foram registradas 50.098 denúncias contra a violência infantojuvenil e, desse total, 40.822 (81%) dos casos ocorreram dentro da casa da vítima.

Além disso, há também crianças e adolescentes que, por diversos fatores, não podem ser cuidados por seus pais biológicos.

Porém, os governos longe de assumirem quaisquer responsabilidades por essas crianças, delegaram a tarefa do cuidado e acolhimento à instituições filantrópicas, educacionais e tutelares sem ao menos regulamentar ou fiscalizar o tratamento fornecido.

Dessa forma, podemos verificar ao longo da história a ausência de políticas públicas que considerem a saúde mental infantojuvenil.

Mas, a final, o que é uma politica pública?

O que é uma política pública?

Segundo Maria Cristina Ventura, as políticas públicas dizem respeito a um escopo ético de decisões e ações destinadas à resolução de problemas políticos que não podem ser providos ou assegurados privadamente.

Normalmente, as políticas públicas surgem como resposta a alguma demanda formulada por atores sociais, e alcança status de política pública quando o escopo é incluído na agenda pública de ação e debate.

Assim, participação social, debate político, proposição de modelos assistenciais, plano de ação, destinação financeira e fiscalização são, portanto, ações correlacionadas, interdependentes e fundamentais para uma política pública.

Isso significa dizer que, para existir, a política pública exige das esferas e instituições o reconhecimento de sua responsabilidade e obrigação em assegurar direitos, oportunidades, inclusão e participação.

Em relação à infância e adolescência, essas políticas foram amparadas mundialmente pelo movimento internacional de defesa aos direitos humanos e gerou uma profunda mudança nas concepções sobre o cuidado com crianças e o adolescentes.

Na área da saúde, o esforço da promulgação da Constituição de 1988 em redesenhar o dever do Estado brasileiro para formular novas políticas públicas que garantam o acesso de toda a população à saúde resultou na formulação do Sistema Único de Saúde, o SUS, que expressa a responsabilidade das esferas públicas em promoverem saúde à população, baseando-se no princípio da equidade e universalidade.

Assim, com a criação do SUS, a Saúde deixa de ser um problema individual e se torna um bem público.

O passado da saúde mental infantojuvenil

Porém, no que diz respeito a saúde mental infantojuvenil, não é possível afirmar que existiu quaisquer políticas públicas que assegurassem o direito de crianças e adolescentes até o final do século XX.

Os caminhos para construção dessa política só foram propostos no contexto brasileiro a partir de 2001, já que foi fortemente dependente de dois outros movimentos anteriores: a luta internacional pelos direitos humanos e a luta nacional pela Lei N°10.216.

No entanto, até a data marco de mudança, o Estado brasileiro teve, historicamente, uma postura tutelar e disciplinar em relação a criança e ao adolescente, fortemente amparada na institucionalização da prevenção (vigiar o menor), educação (moldar o menor), punição e repressão (castigar o menor delinquente na tentativa de reabilitá-lo).

Além disso, antes da data marco de mudança, o país não dispunha de quaisquer formulações por parte do setor da saúde mental que orientasse a construção de uma rede de cuidados para crianças e adolescentes com dificuldades mentais ou psicossociais.

A responsabilidade desse cuidado era relegado às ações assistenciais, quando existentes, às esferas da assistência social e educação, sempre com moldes mais disciplinares e “corretivos” do que assistenciais e promotores de direitos.

Assim, o cuidado dirigido para a infância e adolescência na época acabou por validar gerar propostas de intervenção calcadas no isolamento e na institucionalização, adotando, como solução, o encaminhamento e a permanência de crianças em instituições fechadas, especiais, ou de reeducação tutelar.

Portanto, o passado da saúde mental infantojuvenil é assombrado pela ausência de debate político em considerar as crianças e adolescentes como sujeito psiquicos e de direitos.

Assim, a esfera pública privou-se, historicamente, em garantir e promover os direitos da população infantojuvenil, registrando um marco quase centenário de invisibilidade à criança e ao adolescente.

O início da mudança

As ações que contribuíram para a mudança do cenário do cuidado infantojuvenil desenvolveram-se apenas a partir de 2001, quando as condições concretas de possibilidade para a saúde mental infantojuvenil como política pública se tornaram visíveis e eficazes.

Essas condições vieram de acontecimentos diretamente ligados ao campo da saúde mental e a outros fatores externos, que inseriram uma nova concepção de criança e adolescente no ordenamento jurídico, político e social do brasileiro.

Externamente à saúde mental, dois eventos se inscreveram na história como marcos na construção social e política de uma nova concepção de criança e adolescente.

O primeiro, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1989.

O segundo, a promulgação, no Brasil, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, que estabeleceu direitos de cidadania para crianças e adolescentes e alterou a condição jurídica anterior de “menores” para a de sujeitos de direitos, substituindo a doutrina da situação irregular pela da proteção integral.

Além disso, no que diz respeito ao campo da saúde mental, outras ações foram de fundamental importância para a mudança de paradigma.

Primeiro, a promulgação da Lei da Saúde Mental, a Lei 10.216, que dispôs sobre a proteção e garantia de direitos às pessoas portadoras de transtornos mentais, além de redirecionar o modelo de cuidado institucional das práticas manicomiais para o modelo assistencial.

O segundo fator foi a realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), ocorrida em 2001, que elevou o patamar da Reforma Psiquiátrica brasileira e ampliou o alcance de suas ações.

Com essa Lei, a saúde mental passou a constituir-se como uma política de Estado ancorada na defesa dos direitos de cidadania dos pacientes mentais e não apenas como um programa de governo.

Com a III CNSM, o campo da saúde mental viu ratificado o anseio social pela substituição no país do modelo de tratamento baseado na centralidade do tratamento manicomial dos hospitais psiquiátricos pelo modelo comunitário de atenção.

Esses acontecimentos – isto é, a Convenção da ONU e o ECA, no início dos anos 90, associados à emergência da Lei da saúde mental e à realização da III CNSM, em 2001 -, engendrados por movimentos sociais distintos, foram responsáveis pela emergência de condições simbólicas e reais para a proposição da política de saúde mental para crianças e adolescentes no início do século XXI.

Mas, se marcos legais por si não alteram a realidade, eles podem, em certas circunstâncias, incentivar mudanças na realidade, agindo ativamente na inscrição social de novas concepções e práticas que estão dentro do escopo ético proposto pela pressão social.

Assim, no que diz respeito às mudanças reais dentro do cenário da saúde mental infantojuvenil no Brasil, os CAPSi constituem a primeira ação concreta oriunda da nova posição do Estado brasileiro frente às questões da SMCA.

Compostos por equipes multiprofissionais, fundamentadas na lógica da atenção diária, da intensividade do cuidado, do trabalho em rede e baseados na comunidade, os CAPSi inauguram a resposta oficial do SUS à necessidade de cuidado para crianças e adolescentes com problemas mentais que, até aquele momento, não encontravam na atenção psicossocial possibilidade real de atendimento.

A criação dos CAPSi  constituiu uma ação-chave para alavancar a montagem do cuidado da rede pública com crianças e adolescentes.

A nova concepção de criança e adolescente, possibilitada pelo marco dos direitos humanos, permitiu que fossem reconhecidos como questões relevantes para as políticas públicas de cuidado aspectos fundamentais de sua condição de sujeito psíquico:  indivíduos que partilham a condição humana e o fato de terem histórias de vida e experiências particulares, seres atravessados pelos enigmas da existência, seres que sofrerem e transtornarem-se, podendo expressar diferentes maneiras o transtorno, mal-estar, sofrimento intenso, euforia ou felicidade.

Nada mais são que sujeitos plenos que, portanto, desenvolvem-se, socializam e aprendem, passíveis de sofrimento e adoecimento mental, com direito de serem cuidados quando o sofrimento se fizer insuportável ou quando impossibilitar a construção ou sustentação de laços sociais sem que esse cuidado se reduza à correção, normalização ou adaptação de comportamentos.

Dica: Participe do III Congresso Internacional Novas Abordagens em Saúde Mental Infantojuvenil a ser realizado em Florianópolis/SC com organização do CENAT, têm por objetivo ser um espaço de discussão e debate sobre a situação da saúde mental da criança e adolescente. https://cenatsaudemental.com/congressosaudementalinfantojuvenil2022

Conclusão

No entanto, o percurso já realizado vem também expondo a existência de problemas estruturais que requerem ações e investimentos consistentes para que sejam reparados.

Por exemplo, ainda é insuficiente o número de CAPSi implantados (apenas 183 serviços no ano de 2013) e ainda são escassas as estratégias de formação para os profissionais da rede,  o que acaba por comprometer o exercício das propostas inauguradas pelo CAPSi que, por seu caráter inovador, exige acompanhamento, formação e especializações permanentes para a capacitação dos profissionais.

Somados a esses desafios, há indicativos de baixa institucionalidade das redes de atenção em certas localidades do país, com poucos serviços em funcionamento ou atuando de forma desarticulada.

Conclui-se, dessa forma, que as propostas e ações da política pública são potentes e promissoras, mas ainda não estão consolidadas.

Portanto, para que a proposta de um novo cuidado a saúde mental da criança e do adolescente seja concluída, ainda dependemos fortemente de investimentos substanciais pelas esferas de gestão do SUS, para que assim a realidade brasileira seja marcada por um novo tempo e um novo olhar pelo cuidado e tratamento de crianças e adolescentes em sofrimento mental.

Assim, e somente assim, conseguiremos apagar o passado assombroso das políticas públicas  frente ao cuidado da saúde mental infantojuvenil.

Referências

– Couto, Maria Cristina Ventura e Delgado, Pedro Gabriel Godinho – Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psicologia Clínica [online]. 2015, v. 27, n. 1 [Acessado 30 Outubro 2021] , pp. 17-40. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-56652015000100002>. ISSN 1980-5438. https://doi.org/10.1590/0103-56652015000100002.

Maria Cristina (UFRJ) || O passado da saúde mental infantojuvenil no Brasil – YouTube

–  https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2021/julho/81-dos-casos-de-violencia-contra-criancas-e-adolescentes-ocorrem-dentro-de-casa

3 Comentários


  1. Meus parabéns amei a matéria é um excelente aprendizado vou aproveitar muito com vcs obrigada por essa lição 👋👋👋👍

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