A Invisibilidade Racial: Algumas referências negras na construção do conhecimento em saúde mental

Um dos aspectos do hegemônico processo de colonização que atingiu as Américas foi a construção de inúmeras referências cientificas que consequentemente salvaguardaram a centralidade epistemológica de europeus e norte-americanos.

Suas produções científicas difundidas mundialmente são marcadas pela consolidação do referencial que propõem.

Em contrapartida, as produções dos países latino-americanos, africanos e mesmo de alguns asiáticos aparecem em pouca quantidade e sem expressiva difusão.

Entretanto, compreendemos que as produções cientificas advinda destas regiões, marcadamente intituladas como periféricas, podem trazer potentes e inovadoras contribuições.

Sendo assim, constatamos como consequência dessa circunstância o reduzido número de pensadores e pensadoras negras, latinas, indígenas que, entre outras coisas, deveriam constituir o universo do protagonismo científico e de produção de conhecimento.

Por conseguinte, os ideais e os movimentos libertários se forjaram como um caminho para discussão de novas fontes epistemológicas que se encontravam embaçadas pelo preconceito e domínio euro-americano.

Diante desse cenário, nos propusemos identificar novas possibilidades de fazer pesquisa e de valorizar práticas de cuidado tornando-as também referências de conhecimento.

Acreditamos que tal postura concorre à valorização do rigor ético proporcionando novos modos de atuar tomando por base o conhecimento de personalidades que muito contribuíram com seus pensamentos.

Enfim, a adoção desta escolha teórico-metodológica tem por objetivo fomentar nos leitores o conhecimento de personalidades negras que podem servir de inspiração na construção de saberes no campo da saúde mental, assim como, servir de estímulo a construções de mais ações afirmativas na superação do racismo e da invisibilidade atribuída a esse grupo social.

Virgínia Leone Bicudo (Brasil)

Nascida em SP, (São Paulo, 1915 – 2003) foi uma socióloga e psicanalista brasileira, a primeira não médica a ser reconhecida como psicanalista, tornando-se essencial para construção e institucionalização da psicanálise no Brasil.

No campo da Sociologia, foi pioneira ao tratar do estudo das relações raciais como tema de sua dissertação de mestrado em 1945.Virgínia Bicudo foi a primeira psicanalista sem formação médica no Brasil. Em 1962, foi eleita presidente da segunda diretoria do Instituto de Psicanálise, função que desempenharia até 1975.

Virgínia Bicudo trabalhou de diversas maneiras para a difusão da Psicanálise no Brasil. Redigiu colunas na imprensa, defendendo suas ideias sobre a função social do psicanalista e participou da fundação da Sociedade de Psicanálise de Brasília.

Colaborou também na criação da Revista Brasileira de Psicanálise (RBP). Em editorial de 2004, essa revista se referiu a ela como “uma das primeiras psicanalistas brasileiras com trânsito e publicações internacionais”.

Obras produzidas:

Nosso Mundo Mental. São Paulo: Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1956.

Comunicação não-verbal como expressão de onipotência e onisciência. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, vol.37, n.4, 983-992, 2003.

Hiram Chomba (Quênia)

Psicanalista, trabalha na organização “Befrienders Kenya”, ajuda pessoas com depressão e pensamentos suicidas, dá apoio às famíias. (4 pessoas por dia suicidam-se neste país do leste da África diariamente, em média). Vive em Embu, pequena cidade de Nairobi. Visita seus pacientes de moto ou “matatu” (carros pequenos), nas áreas mais remotas do Quênia.

Serge Kalongo Tshiswaka (Congo)

Quando chegou ao Brasil para estudar, em 2007, o enfermeiro congolês Serge Tshiswaka não imaginou que alguns anos depois estaria não só residindo permanentemente no Brasil como transformando a vida de centenas de pessoas.

Casado com uma brasileira e residente em Campinas, o profissional, formado em bioquímica na República Democrática do Congo e em enfermagem pela PUC de Campinas, trabalha no Hospital Ouro Verde desde 2012.

A partir do ano seguinte, Serge passou a utilizar a música como forma de auxiliar seus pacientes. “Um belo dia, eu vi uma senhora que era paciente cantando em um dos corredores do hospital e perguntei se eu podia cantar junto com ela. Nós cantamos e depois disso percebi que melhorou muito minha relação com ela”, conta Serge.

Mais tarde, a chefe de Serge no hospital recebeu um vídeo dele cantando com usuário e gostou do que viu. Serge perguntou a ela se poderia continuar cantando e a resposta foi afirmativa. Usou a música como um recurso do cuidado para a enfermagem em saúde mental.

Atualmente, o projeto “Saúde, Música e Alegria”, como foi batizado, atende em vários hospitais e conta com diversos colaboradores. “Temos engenheiros, médicos, recepcionistas e os mais diversos profissionais fazendo esse trabalho conosco”, explica o enfermeiro.

Sobre o impacto positivo da música na saúde dos pacientes, Serge não tem dúvidas.

“A melhora que a gente vê no paciente com o uso da música é imediata, o retorno não é só para o paciente, mas é para nós também”, diz.

Atualmente ele faz palestras e participa de campanhas, integração de equipes e eventos com o projeto Saúde, Música e Alegria, e concilia a agenda cheia de atividades com um mestrado em curso na PUC de Campinas sobre o impacto da música como redutor de ansiedade em crianças.

Juliano Moreira (Brasil)

Juliano Moreira (1873-1933), baiano de Salvador, é frequentemente designado como fundador da disciplina psiquiátrica no Brasil. Sua biografia justifica tal eleição: mestiço (mulato), de família pobre, extremamente precoce, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 13 anos, graduando-se aos 18 anos (1891), com a tese “Sífilis maligna precoce”.

Cinco anos depois, era professor substituto da seção de doenças nervosas e mentais da mesma escola. De 1895 a 1902, frequentou cursos sobre doenças mentais e visitou muitos asilos na Europa (Alemanha, Inglaterra, França, Itália e Escócia).

De 1903 a 1930, no Rio de Janeiro, dirigiu o Hospício Nacional de Alienados. Neste, embora não fosse professor da Faculdade de Medicina do Rio, recebia internos para o ensino de psiquiatria.

Aglutinou ao seu redor médicos que viriam a ser, eles também, organizadores ou fundadores na medicina brasileira.

Um aspecto marcante na obra de Juliano Moreira foi sua explícita discordância quanto à atribuição da degeneração do povo brasileiro à mestiçagem, especialmente a uma suposta contribuição negativa dos negros na miscigenação.

A posição de Moreira era minoritária entre os médicos, na primeira década do século XX. Também desafiava outro pressuposto comum à época, de que existiriam doenças mentais próprias dos climas tropicais.

Seu espírito aberto e inquieto não ignorou a psicanálise; tendo domínio do alemão, conhecia as obras de Freud e tinha uma avaliação crítica delas.

Ao longo de toda sua vida, participou de muitos congressos médicos e representou o Brasil no exterior, na Europa e no Japão. Foi membro de diversas sociedades médicas e antropológicas internacionais.

Frantz Fanon (França)

Psiquiatra, filósofo, ensaísta, marxista, francês da Martinica, ascendência francesa e africana, envolvido na luta pela independência da Argélia, influente pensador do século XX, seus escritos versam sobre descolonização e psicopatologia da colonização.

Fanon, deixou obras importantes para o pensamento decolonial. As representações dialéticas entre o branco/superior e negro/inferior sustentadas pela relação de poder e dominação.

O autor pontua que as relações étnico raciais hierarquizadas podem representar um desencadeador psíquicos de diversas ordens e consequentemente psicopatológico.

As obras de Fanon tem servido como referência para estudos contemporâneos sobre racismo e pós colonialismo.

Algumas Obras:

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas / Frantz Fanon ; tradução de Renato da Silveira . – Salvador: EDUFBA, 2008, 194p.

FANON, F. Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos; tradução de Sebastião Nascimento.  São Paulo:  Ubu, 2020. 400p.

Neusa Santos Sousa (Brasil)

Nascida em Cachoeira, Bahia, formou-se em medicina pela Universidade Federal da Bahia e tornou-se psiquiatra e psicanalista de orientação lacaniana.

Estabeleceu-se no Rio de Janeiro onde adquiriu o título de Mestre em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, conviveu com intelectuais e deu importante contribuição na luta contra a discriminação racial.

Sua dissertação de mestrado deu origem à obra “Tornar-se negro”: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, considerado um marco da psicologia preta no Brasil. Contribuiu também com artigos sobre a psicose e a psicanálise lacaniana.

Trabalhou no Núcleo de Atendimento Terapêutico – NAT, no Centro Psiquiátrico Pedro II, atual IMAS Nise da Silveira, Casa Verde Núcleo de Assistência em Saúde Mental que também funciona como hospital dia e atendimentos psicoterapêuticos, onde organizou diversos seminários. Escrevia para jornais e periódicos, frequentemente no Correio da Baixada.

É saudada pelo Conselho Federal de Psicologia que após pressão dos movimentos negros, lançou um guia de referências técnicas para a atuação dos psicólogos, sobre relações raciais.

Por ocasião de sua morte, em 2008, a Fundação Palmares louvou, em nota, sua contribuição para o estudo das relações raciais, considerando a obra da autora como “primeira referência sobre a questão racial na psicologia”.

A produção acadêmica de Neusa Santos é referência para o pensamento da psicologia brasileira sobre relações étnico-raciais, sobre o processo de “branqueamento” e o sofrimento psíquico dos negros na sociedade brasileira.

Seu nome é homenageado no Rio de Janeiro, com o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) II Neusa Santos Souza.

Em 1983 publicou o livro Tornar-se Negro prestando uma grande contribuição à área das relações raciais.

A obra traz o estudo da autora sobre a vida emocional dos negros, com reflexões sobre o custo emocional da negação da própria cultura e do próprio corpo, considerada a primeira referência sobre a questão racial na psicologia.

No livro, a autora mostra a rejeição do negro por seu aspecto exterior e explica que é necessário um raro grau de consciência para que esse quadro se inverta.

Quando isso acontece, a cor e o corpo do negro são sentidos como valor de beleza. Com cerca de 60 anos de idade suicidou-se e deixou uma pequena mensagem pedindo desculpas aos poucos amigos do peito por sua decisão radical.

Algumas obras:

Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social (1983)

A psicose: um estudo lacaniano (1991)

O objeto da angústia (2005)

Dixon Chibanda (Zimbábue)

 

Psiquiatra zimbabuano que desenvolveu um trabalho na prevenção ao suicídio. Ao identificar um número expressivo da população desse país que comete suicídio constatou uma escassez de profissionais da saúde mental.

Chibanda ao se deparar com essa problemática alcançou uma solução peculiar e inovadora: as vovós. Juntamente com sua equipe ensinaram a mais de 400 avós técnicas de terapia com evidências científicas que elas praticam gratuitamente em várias comunidades no Zimbábue.

Em 2017, o Banco da Amizade, como é chamado o programa, ajudou mais de 30 mil pessoas. O método foi avaliado empiricamente e expandido para outros países, incluindo os Estados Unidos.

Chibanda acredita que o programa pode servir como modelo para qualquer comunidade, cidade ou país interessado em oferecer serviços de saúde mental acessíveis e altamente eficazes para seus habitantes. “Imagine se pudéssemos criar uma rede global de avós em toda grande cidade do mundo.”

Ele era o único psiquiatra no Zimbábue trabalhando no setor público de saúde, mas seus supervisores lhe disseram que não tinham recursos. Todas as enfermeiras estavam ocupadas com problemas de HIV e cuidados maternais e infantis, e todos os quartos do hospital estavam cheios.

Ao falar do projeto, Chibanda descreve que:

“Muitas pessoas acham que sou um gênio por ter tido essa ideia, mas não é verdade. Eu só tive de trabalhar com o que tinha”[…]”Eu estava cético quanto a usar mulheres idosas”, ele admite. E não era o único a pensar assim. “Muitas pessoas acharam a ideia ridícula”, diz ele. “Meus colegas me disseram que não fazia sentido”.

Chibanda passou a instruir as avós por meio de conceitos culturalmente enraizados com os quais as pessoas poderiam se identificar.

Em outras palavras, elas precisavam falar a língua das pessoas em sofrimento psíquico, além do treinamento formal que receberam, elas trabalharam juntas para incorporar conceitos da cultura shona sobre abrir a mente, fortalecer e animar o espírito. Desde então tem seguido e dando cientificidade por diversos países.

Autoras:

  • Luciana Silvério Alleluia Higino da Silva: Enfermeira estatutária do IPUB/UFRJ, Doutoranda PACCS/ UFF, Mestre em ensino na saúde MPES/UFF, Especialista em saúde mental e psiquiatria.
  • Cyntia Macedo Amaral: Enfermeira Graduada pela UERJ, Atuou na área de neuroreabilitação na Rede Sarah, Infectologia no INI e Saúde da família, atualmente oferece consultoria sobre cuidados aos recém nascidos.

Referências:

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-46283465 consultado em 10/10/2020.

«Pioneiras da Ciência no Brasil». www.cnpq.br. Consultado em 5 de novembro de 2015

«Virgínia Bicudo: Mulher, negra e pioneira na psicanálise. Mas invisível no Brasil». HuffPost Brasil. 16 de abril de 2017

TEPERMAN, Maria Helena Indig (2011). «Virgínia Bicudo: uma história da psicanálise brasileira». Brasília. Jornal de Psicanálise. 44. Consultado em 20 de maio de 2020

Medeiros da Silva, Mário Augusto (agosto de 2011). «Reabilitando Virgínia Leone Bicudo». Brasília. Sociedade e Estado. 26. Consultado em 20 de maio de 2020

https://portal.coren-sp.gov.br/noticias/enfermeiro-congoles-leva-alegria-pacientes-por-meio-da-musica-em-campinas

/https://gshow.globo.com/EPTV/Mais-Caminhos/resumo/enfermeiro-leva-projeto-de-musica-a-hospitais-de-campinas.ghtmlhttps

//www.escavador.com/sobre/277765645/serge-kalongo-tshiswaka

Carvalhal LA. Loucura e Sociedade: o pensamento de Juliano Moreira (1903-1930) [monografia de bacharelado em História]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1997.

Passos A. Juliano Moreira (vida e obra). Rio de Janeiro: Livraria São José; 1975.

Moreira J, Peixoto A. Les maladies mentales dans le climats tropicaux. Arq Bras Psiquiatr Neurol Ciênc Afins 1906;II(1):222-41.

Dalgalarrondo P. Cartas de Juliano Moreira a Emil Kraepelin. In: Civilização e Loucura: Uma Introdução à História da Etnopsiquiatria. São Paulo: Lemos; 1996. p.117-24.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Neusa_Santos_Souza

http://www.palmares.gov.br/?p=3166

 

 

4 Comentários


  1. Gostei muito de saber das referências e de tantos ótimos projetos desenvolvidos. Parabéns.

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