Quais são as bases científicas das boas práticas em saúde mental?

Este artigo é uma transcrição de uma entrevista do Prof Deivisson Vianna: Quais são as bases científicas das boas práticas em saúde mental?

O Professor Deivisson Vianna é médico psiquiatra por formação, natural da Bahia, mas atualmente, exerce a função de professor na Universidade Federal do Paraná, onde concentra suas atividades no campo da saúde coletiva.

Quando questionado sobre sua escolha pela medicina em meio a tantas outras áreas, Deivisson compartilha sua jornada pessoal.

Ele reconhece que, como muitos jovens, escolheu o curso de medicina em função das expectativas de seus pais, que o incentivaram nessa direção.

Inicialmente, seu interesse estava em campos como história e sociologia, áreas das ciências humanas, nas quais ele queria atuar.

No entanto, a pressão de seu pai o levou a optar pela medicina, sob a condição de que ele financiaria seus estudos apenas nessa área.

Em um primeiro momento, ele ponderou sobre desistir do curso, mas à medida que cresceu, passou a assumir o controle de sua própria vida. Foi esse processo de amadurecimento que o conduziu à psiquiatria, que oferece uma conexão mais estreita com as ciências humanas.

Posteriormente, ele direcionou seu foco para a saúde coletiva, um campo que se baseia fortemente nas ciências sociais da saúde.

Trabalhando com pesquisas qualitativas

, ele reconectou-se com seu desejo inicial de seguir uma carreira mais relacionada às ciências humanas. Assim, o Dr. Deivisson transformou sua jornada profissional, indo de um médico a um defensor militante da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial.

Durante a entrevista, foi abordado o percurso do professor Deivisson em direção a uma perspectiva mais ampla sobre a saúde mental, partindo de uma prática psiquiátrica tradicional que enfatiza diagnósticos, sintomas e medicação.

Quando questionado sobre o momento em que começou a buscar uma abordagem mais abrangente na residência, o entrevistado trouxe reflexões sobre a complexidade da medicina como um todo.

Ele ressaltou que, mesmo dentro do campo da medicina, a psiquiatria se destaca por manter um diálogo mais próximo com as pessoas, apesar de seu enfoque em diagnósticos.

Deivisson faz uma comparação com outras especialidades médicas, como radiologia, ortopedia e cirurgia, e destacou que, entre as opções disponíveis, a psiquiatria foi o primeiro passo em direção a uma área de atuação e pesquisa na saúde que permitisse uma interação mais significativa com as ciências humanas e uma abordagem clínica centrada no paciente.

Ele enfatizou que essa transição representa uma jornada contínua e que a escolha da psiquiatria foi apenas o início desse processo.

Hoje, ele acredita que um psiquiatra que não mantém uma visão crítica da própria disciplina pode não ser capaz de oferecer uma abordagem clínica crítica e centrada no paciente na prática da psiquiatria.

Isso evidencia a necessidade de uma constante reflexão e evolução na área da saúde mental e na relação entre médicos e pacientes.

Ao explorarmos o momento em que Deivisson começou a adotar novos conceitos em relação à saúde mental e à psiquiatria, bem como como isso se relacionou com a visão mais tradicional mantida por colegas de residência e professores.

O entrevistado compartilhou sua jornada pessoal de transformação nesse contexto.

Ele destacou que não buscou ativamente esses novos conceitos, mas que eles vieram até ele como um despertar.

Ele expressou sua gratidão por essa mudança de perspectiva. O ponto de virada ocorreu quando começou a trabalhar em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) chamado David Capistrano, localizado em Campinas, interior de São Paulo.

Esse CAPS em particular se destacava por sua abordagem apaixonada e engajada na reforma psiquiátrica.

No entanto, ele passou por uma transformação gradual e profunda, principalmente graças ao embate constante com a equipe do CAPS.

A equipe empregava práticas como supervisão institucional, que o levaram a refletir profundamente sobre sua abordagem clínica.

O professor recordou que sua perspectiva mudou quando a equipe questionou o significado da clínica que estavam praticando.

Eles desafiaram suas ações, incluindo o programa de medicação assistida, no qual forneciam medicamentos a pacientes em internação domiciliar.

A supervisão institucional estimulou discussões críticas sobre a abordagem da equipe em relação à internação domiciliar, o que o levou a repensar suas práticas.

Ele enfatizou que a mudança em sua perspectiva não resultou de uma busca individual por novos conhecimentos, mas sim da imersão em um modelo de serviço específico.

Portanto, destacou a importância de lutar por serviços de saúde territorialmente adequados, ricos em recursos e reflexivos, pois esses serviços não apenas atendem às necessidades de saúde mental, mas também são espaços valiosos para o aprendizado e a formação profissional.

Essa narrativa ilustra como a prática clínica, especialmente dentro do contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) e de serviços de saúde mental, foi fundamental para sua evolução e sua compreensão da psiquiatria e da saúde mental.

Ele enfatiza que a definição de boas práticas não deve ser determinada por ele, mas sim pelos usuários, ou seja, as pessoas sob cuidados.

Deivisson ressalta o paradigma fundamental de que a clínica deve estar centrada no que o usuário sabe, interpreta e valoriza em seu percurso de tratamento e história de vida. Essa perspectiva se desenvolveu ao longo do tempo e por meio de experiências desafiadoras.

Deivisson compartilha seu próprio processo de autocrítica, reconhecendo erros passados e uma abordagem enquanto médico. Ele destaca a importância de ouvir atentamente as equipes e desenvolver a capacidade de se adaptar a essas percepções.

O professor Deivisson sublinha a importância de não impor práticas predefinidas, mas sim de envolver ativamente o paciente na construção de sua própria abordagem de tratamento. Isso envolve ajudar o usuário  que a narrativa pessoal por trás do diagnóstico é ainda mais essencial.

Essa narrativa pode ser empoderadora e significativa para o paciente.

Deivisson também enfatiza que o que pode ser uma boa prática para uma pessoa pode não ser apropriado para outra.

Portanto, o cerne da boa prática está na construção de uma abordagem que faça sentido para o indivíduo e leve em consideração sua perspectiva e desejos. Isso, segundo ele, é um elemento crucial de sua prática clínica.

É discutida a importância de construir o cuidado conjunto com o paciente, focando na construção do projeto de vida e na busca da autonomia de cada indivíduo.

Ao longo da entrevista, são mencionadas abordagens como o Grupo de Acompanhamento e Monitoramento (GAM), Ouvidores de vozes, Open dialogue e Enik Recovery College, que colocam o usuário no centro do cuidado.

Deivisson começou sua explicação abordando a questão das evidências em medicina. Ele destaca que a medicina tradicional se baseia fortemente em evidências com base em estudos clínicos controlados, duplo-cegos e randomizados.

No entanto, ele ressalta que as evidências são estatísticas e não consideram as particularidades de cada indivíduo.

Deivisson menciona o exemplo dos antidepressivos, explicando que, embora esses medicamentos tenham uma eficácia estatisticamente significativa para um grupo de pessoas, não funcionam para todos.

Alguns pacientes podem tomar antidepressivos a vida toda e não apresentar melhorias significativas.

Deivisson introduz o conceito de evidência narrativa, que considera o testemunho e a história pessoal do paciente como uma forma de evidência científica.

Ele compartilhou o caso de Paty Deegan, uma ex-usuária que argumentou que tratamentos ocidentais, como risperidona, lithium, etc, não funcionavam para sua história e que outras abordagens a ajudaram mais.

E ela escreve a sua história com detalhes e, embora esse grau de detalhamento tenha um poder limitado, nos dá a oportunidade de utilizarmos isso pra outros casos similares. Então, a ciência passou a utilizar o testemunho, a narrativa enquanto evidência.

Ele explicou que pesquisas com metodologia qualitativa são necessárias para avaliar abordagens centradas na pessoa, pois lidam com histórias individuais e não podem ser tratadas como coletivos estatísticos.

Portanto, essas estratégias têm bases científicas, mas são fundamentadas em um tipo de evidência científica diferente, conhecida como evidência narrativa, que é igualmente importante e válida.

Essa abordagem, segundo Deivisson, permite que diferentes experiências de tratamento sejam exploradas e valorizadas, mesmo que não tenham a mesma escala que abordagens tradicionais baseadas em evidências estatísticas.

Durante a entrevista é explorada a importância da pesquisa qualitativa e da escuta ativa para entender as necessidades dos pacientes e a eficácia das abordagens de cuidados de saúde.

Muitas instituições de pesquisa no Brasil e no exterior estão focadas em estudar abordagens centradas no paciente, mesmo que essas abordagens não sejam necessariamente novas em termos de idade ou pesquisa.

Deivisson compartilha exemplos de sua experiência como profissional e pesquisador. Ele começa com um exemplo fora da área de saúde mental, relacionado ao pré-natal.

Ele explica como a pesquisa qualitativa e a escuta ativa permitem avaliar a eficácia de testes médicos, levando em consideração o conforto e as preferências dos pacientes.

É enfatizada a importância de considerar a experiência do paciente como uma forma de evidência.

Em relação à saúde mental, Deivisson destaca pesquisas que abordam o uso de antipsicóticos por pacientes que ouvem vozes.

Ele explica que, por meio de pesquisas qualitativas, é possível compreender como esses medicamentos afetam os pacientes, o que ajuda a adaptar o tratamento de acordo com as necessidades individuais.

Além disso, ele menciona que a pesquisa qualitativa pode identificar as estratégias que as pessoas utilizam para lidar com seu sofrimento mental.

A abordagem centrada no paciente, baseada na escuta ativa e na pesquisa qualitativa, permite uma compreensão mais profunda das necessidades e preferências dos pacientes, contribuindo para práticas de saúde mais eficazes e adequadas.

Enfatizamos, aqui, a importância de ouvir experiências detalhadas de pessoas que lidam com questões como, por exemplo, Ouvir vozes.

Deivisson salienta que quando um ouvidor de vozes compartilha seus artifícios para manejar, compreender e lidar com suas vozes, essa experiência detalhada se torna um testemunho valioso e uma narrativa rica.

Esses relatos podem ser utilizados para melhorar a abordagem e o cuidado em saúde mental.

No campo da saúde mental, não existe um único caminho para o manejo de problemas, e ouvir e valorizar as experiências dos outros é fundamental para aprimorar o conhecimento científico.

Destacamos a importância do protagonismo, onde o foco está na pessoa que vivencia essas experiências, e não no profissional de saúde.

Além da importância do compartilhamento de estratégias entre pessoas que passam por experiências semelhantes, permitindo que cada indivíduo avalie o que faz sentido para ele.

Além disso, como essas abordagens ajudam as pessoas a se sentirem pertencentes a uma comunidade, como num caso compartilhado durante o Congresso em Porto Alegre, Kelly, relata o quanto entrar em um grupo de Ouvidores de vozes ajudou ela a se sentir pertencente aquela tribo. Ela relata nunca ter se sentido pertencente a algo.

O CENAT destaca a importância de formar e informar mais profissionais para impactar positivamente a vida de um número crescente de pessoas.

Deivisson enfatiza a importância da diversidade de abordagens e do envolvimento ativo das pessoas no cuidado de sua saúde mental.

Como reflexão final, Deivisson destaca que a função enquanto pesquisador, enquanto educador é fazer as pessoas refletirem.

Ele argumenta que seu trabalho não visa necessariamente mudar a vida das pessoas, mas sim promover a reflexão sobre como elas veem seus problemas e abordagens clínicas, e se desejam mudar seus paradigmas.

Deivisson enfatiza que, muitas vezes, as abordagens centradas na pessoa enfrentam desconfiança por alguns não  as consideram científicas.

Para combater essa visão limitada da ciência, ele oferece exemplos de como teorias e políticas públicas significativas, como a psicanálise e o consultório na rua, foram construídas a partir de estudos de casos, relatos de narrativas e pesquisas qualitativas.

Ele também explica o conceito de saturação de dados, que sugere que, para tópicos complexos, não é necessário um grande número de participantes, mas sim entrevistas aprofundadas com informantes-chave.

Deivisson contrapõe o argumento que as abordagens centradas na pessoa romantizam o sofrimento, defendendo que quem faz essa afirmação muitas vezes não se aprofunda na pesquisa científica do campo.

Ele destaca que participar de grupos de apoio, como o dos Ouvidores de Vozes, não implica que as pessoas não sofram, mas que abordem o sofrimento de forma não padronizada, levando em consideração a história individual de cada um.

Ele enfatiza que a produção científica nessa área enriquece a compreensão do problema e promove uma clínica mais rica, levando em consideração a complexidade da experiência de cada indivíduo.

Em resumo, grande parte dessas abordagens inovadoras na área da saúde mental não são desenvolvidas apenas por profissionais ou pesquisadores, mas, na verdade, surgem da necessidade e da experiência dos próprios usuários que não encontraram sucesso nas abordagens tradicionais.

Um exemplo disso é o grupo de Ouvidores de Vozes, que se formou para lidar com situações em que os medicamentos não estavam sendo eficazes.

Nessas abordagens, a parceria entre profissionais e usuários busca formas de tratamento mais individualizadas e contextualizadas, reconhecendo que não há uma receita pronta em saúde mental, uma vez que cada indivíduo traz consigo um contexto de vida único.

Portanto, a flexibilidade e a adaptação a diferentes abordagens e ferramentas são essenciais para atender às necessidades específicas de cada pessoa.

Deivisson Vianna: Médico, Psiquiatra, Mestre e Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com período sandwich na Université de Montréal (UnM). Pai do Gael. Atualmente é docente adjunto do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Pró-Reitor da Rede Nacional PROFSAUDE de mestrados profissionais em saúde da família, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e pesquisador permanente dos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva e Saúde da Família da UFPR. Trabalhou na supervisão e gestão em diversos equipamentos de saúde de Campinas-SP (2005 a 2013), onde foi Coordenador Municipal de Saúde Mental (2009-2011). Também, coordenou a municipalização e reestruturação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Curitiba-PR (2014-2017).

 

 

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