A Reforma Psiquiátrica no Brasil e a Política de Saúde Mental do SUS

O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil teve seu início ao final da década de 70, logo ao fim do período da ditadura militar brasileira, em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, da defesa da saúde coletiva e do protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de novas formas de cuidado.

Embora contemporâneo da Reforma Sanitária, o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira tem uma história própria, inscrita num contexto internacional de mudanças pela superação da violência manicomial.

Fundado na crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, por um lado, e na eclosão, por outro, dos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira é maior do que qualquer conjunto de mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde.

A Reforma Psiquiátrica tornou-se processo político e social complexo, composto de atores, A Reforma Psiquiátrica no Brasil instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário social e da opinião pública.

Compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é no cotidiano da vida das instituições, dos serviços de saúde e saúde mental e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios.

Histórico da Reforma

Reorientação do modelo assistencial. Mudança na maneira de cuidar. Mudança na maneira de olhar o território. Mudança na clinica (clinica da atenção psicossocial, clínica ampliada, clínica da reforma) Mudança na gestão (gestão participativa, com o protagonismo dos usuários) Mudança política (micro e macro política) Mudança cultural (representações sociais sobre a loucura e sobre o cuidado)

(I) crítica do modelo hospitalocêntrico (1978- 1991): O ano de 1978 costuma ser identificado como o de início efetivo do movimento social pelos direitos dos pacientes psiquiátricos em nosso país.

O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), movimento plural formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas, surge neste ano.

É sobretudo este Movimento, através de variados campos de luta, que passa a protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais.

A experiência italiana na época, de desinstitucionalização em psiquiatria e sua crítica radical ao manicômio, por exemplo, é inspiradora, e revela a possibilidade de ruptura com os antigos paradigmas.

Passam a surgir então as primeiras propostas e ações para a reorientação da assistência.

O II Congresso Nacional do MTSM (Bauru, SP), em 1987, adota o lema “Por uma sociedade sem manicômios”.

Neste mesmo ano, é realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio de Janeiro). Neste período, são de especial importância o surgimento do primeiro CAPS no Brasil, na cidade de São Paulo, em 1987, e o início de um processo de intervenção, em 1989, da Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP) em um hospital psiquiátrico, a Casa de Saúde Anchieta, local de maus-tratos e mortes de pacientes.

É esta intervenção, com repercussão nacional, que demonstrou de forma inequívoca a possibilidade de construção de uma rede de cuidados efetivamente substitutiva ao hospital psiquiátrico.

Neste período, são implantados no município de Santos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) que funcionam 24 horas, são criadas cooperativas, residências para os egressos do hospital e associações .

A experiência do município de Santos passa a ser um marco no processo de Reforma Psiquiátrica brasileira .

Trata -se da primeira demonstração, com grande repercussão, de que a Reforma Psiquiátrica, não sendo apenas uma retórica, era possível e exequível .

Também no ano de 1989 , dá entrada no Congresso Nacional o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG), que propõe a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país .

É o início das lutas do movimento da Reforma Psiquiátrica nos campos legislativo e normativo. Com a Constituição de 1988 , é criado o SUS – Sistema Único de Saúde, formado pela articulação entre as gestões federal, estadual e municipal, sob o poder de controle social, exercido através dos “Conselhos Comunitários de Saúde” .

Inicia a implantação da rede extrahospitalar (1992-2000).

A partir do ano de 1992, os movimentos sociais, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, conseguem aprovar em vários estados brasileiros as primeiras leis que determinam a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental.

É a partir deste período que a política do Ministério da Saúde para a saúde mental, acompanhando as diretrizes em construção da Reforma Psiquiátrica, começa a ganhar contornos mais definidos.

É na década de 90, marcada pelo compromisso firmado pelo Brasil na assinatura da Declaração de Caracas e pela realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, que passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais regulamentando a implantação de serviços de atenção diária, fundadas nas experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia, e as primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos.

Neste período, o processo de expansão dos CAPS e NAPS é descontínuo. As novas normatizações do Ministério da Saúde de 1992, embora regulamentassem os novos serviços de atenção diária, não instituíam uma linha específica de financiamento para os CAPS e NAPS.

Do mesmo modo, as normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos não previam mecanismos sistemáticos para a redução de leitos.

Ao final deste período, o país tem em funcionamento 208 CAPS, mas cerca de 93% dos recursos do Ministério da Saúde para a Saúde Mental ainda são destinados aos hospitais psiquiátricos.

A Reforma Psiquiátrica depois da lei Nacional (2001 -2005)

É somente no ano de 2001, após 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, que a Lei Paulo Delgado é sancionada no país. A aprovação, no entanto, é de um substitutivo do Projeto de Lei original, que traz modificações importantes no texto normativo.

Assim, a Lei Federal 10.216 redireciona a assistência em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, mas não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios.

Ainda assim, a promulgação da lei 10.216 impõe novo impulso e novo ritmo para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil.

É no contexto da promulgação da lei 10.216 e da realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, que a política de saúde mental do governo federal, alinhada com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, passa a consolidar-se, ganhando maior sustentação e visibilidade.

A Reforma Psiquiátrica no Brasil Linhas específicas de financiamento são criadas pelo Ministério da Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico e novos mecanismos são criados para a fiscalização, gestão e redução programada de leitos psiquiátricos no país.

A partir deste ponto, a rede de atenção diária à saúde mental experimenta uma importante expansão, passando a alcançar regiões de grande tradição asilar, onde a assistência comunitária em saúde mental era praticamente inexistente.

Neste mesmo período, o processo de desinstitucionalização de pessoas longamente internadas é impulsionado, com a criação do Programa “De Volta para Casa”.

Uma política de recursos humanos para a Reforma Psiquiátrica é construída, e é traçada a política para a questão do álcool e de outras drogas, incorporando a estratégia de redução de danos.

Realiza-se, em 2004, o primeiro Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, em São Paulo, reunindo dois mil trabalhadores e usuários de CAPS.

Este processo caracteriza-se por ações dos governos federal, estadual, municipal e dos movimentos sociais, para efetivar a construção da transição de um modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, para um modelo de atenção comunitário.

O período então caracteriza-se assim por dois movimentos simultâneos: a construção de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação hospitalar, por um lado, e a fiscalização e redução progressiva e programada dos leitos psiquiátricos existentes, por outro.

É neste período que a Reforma Psiquiátrica se consolida como política oficial do governo federal.

O debate científico: evidência e valor

Desde o início do debate nacional sobre a nova lei da reforma psiquiátrica, a partir de 1989, instalou-se nos meios profissionais e científicos um importante debate sobre a mudança do modelo assistencial, e mesmo sobre as concepções de loucura, sofrimento mental e métodos terapêuticos.

Este debate ainda é uma das marcas do processo de reforma no Brasil, e está presente nas universidades, nos serviços, nos congressos científicos, na imprensa corporativa (de associações e conselhos profissionais).

No primeiro momento, as associações de familiares juntaram-se ao coro de críticas ao processo de reforma, posição que foi mudando ao longo do tempo, e à medida que os próprios familiares iam sendo chamados a desempenhar o importante papel de “parceiros do tratamento” nos novos ambientes de atendimento: CAPS, ambulatórios, residências terapêuticas, rede básica.

De fato, neste primeiro momento, um dos argumentos principais dos familiares reproduziam a exigência de “cientificidade” da psiquiatria, no pressuposto de que esta estaria presente no modelo anterior mas não nos novos dispositivos de atenção.

O fato é que a reforma trouxe ao debate científico da psiquiatria e da saúde mental o tema inóspito da organização dos serviços de saúde, saúde pública, acessibilidade, garantia da qualidade de atenção para toda a população.

Novos desafios para a formação de profissionais, desde a graduação, são colocados para a saúde pública, e vêm sendo enfrentados na forma de programas de residência médica, residência multidisciplinar, cursos de especialização, apoiados financeiramente pelo Ministério da Saúde.

No que tange ao debate científico, o Ministério da Saúde associou-se ao CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico para que centros brasileiros de alto nível acadêmico tomassem a si a tarefa de produzir análises sobre os novos serviços e novo modelo de atenção.

Constituiu-se uma significativa linha de financiamento com muitas unidades de pesquisa interessadas, com o objetivo de buscar atravessar este fosso profundo que parece separar o debate científico da psiquiatria no país.

De todo modo, os desafios da saúde pública, colocados na agenda da psiquiatria e da saúde mental pelo processo de reforma psiquiátrica, tornam-se hoje um tema irrecusável para as instituições de formação e de pesquisa no Brasil.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO:

 

6 Comentários


  1. Quando esse conteúdo foi escrito? em que ano? Quero usar como referência p um trabalho científico.

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    1. Inclusive, amei a matéria, obrigada por trazer um assunto tão relevante e importante com dados confiáveis.

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