A História do Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes

Introdução

O Hearing Voices Movement (HVM) – Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes – teve sua origem na colaboração entre o psiquiatra holandês, Marius Romme, sua paciente, Patsy Hage, e a pesquisadora em psiquiatria social – colega de Marius – Sandra Escher.

Iniciado na década de 80, o movimento seria composto por ouvintes e familiares em união a pesquisadores e estudiosos do tema para questionar, criticar e reformular entendimentos biomédicos tradicionais a respeito da experiência de se ouvir de vozes.

Desenvolver estruturas de enfrentamento e recuperação, redefinir as posições estabelecidas de poder e expertise na relação entre profissionais e ouvintes, além de promover a defesa política dos direitos daqueles que ouvem vozes; todos esses eram, e ainda são, seus objetivos.

O desenvolvimento de grupos de suporte em pares (em conjunto) para os ouvintes, dos primeiros grupos de ouvidores de vozes, fez-se uma conquista particularmente notável desse movimento.

Marius Romme e Sandra Escher

Na Inglaterra, por exemplo, existem atualmente mais de 180 grupos em atividade dentro de uma série de espaços, incluindo serviços de saúde mental para crianças e adolescentes, presídios, unidades de internação e do setor voluntário.

Organizado em várias redes nacionais e internacionais, o sucesso do movimento pode ser observado em sua difusão nos últimos 20 anos em toda a Europa, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia, assim como em iniciativas emergentes na América Latina, na África e também na Ásia.

Dentro dessas redes, a experiência combinada de ouvintes e profissionais supervisiona o desenvolvimento das diferentes maneiras sobre como trabalhar com pessoas que ouvem vozes, sempre valorizando o apoio que ajuda outras pessoas a viverem de forma tranquila e positiva com suas vozes.

Dada sua difusão, as abordagens geradas pelo HVM ofereceram uma alternativa construtiva para os ouvintes que não se sentiam abarcados pelas abordagens tradicionais.

Permitiu com que encontrassem uma maior compreensão e aceitação de suas experiências, assim como o desmembrar da sensação de que suas histórias não mereceriam ser ouvidas ou reconhecidas de verdade.

Uma breve história do Hearing Voices Movement

O primeiro artigo para articular a prática e a filosofia do HVM foi publicado há mais de 20 anos por Marius Romme e Sandra Escher.

Nele, ambos relatariam suas experiências com dezenas de ouvintes não-clínicos compartilhando insights sobre como teriam lidado bem com suas experiências ouvindo vozes.

Mais tarde, esses indivíduos seriam convidados a contar suas histórias no primeiro Congresso do Hearing Voices Movement, em 1987.

Romme e Escher concluíram ao longo dos anos que, apontar o ouvir das vozes apenas como um fenômeno patológico, nem sempre traria benefícios no sentido de ajudar as pessoas a aprenderem a lidar com suas vozes.

Ambos passariam a recomendar que a prática efetiva de apoio aos indivíduos em dificuldades deveria envolver a tentativa de entender o referencial dos ouvintes, apoiando-os a mudar seu relacionamento com suas vozes, promovendo o diálogo por meio do suporte em conjunto na tentativa de diminuir o isolamento social e o estigma.

Para os ouvintes, essa nova forma de entender essas vivências forneceu uma alternativa construtiva às abordagens psiquiátricas tradicionais, muitas vezes resumidas como  uma “tentativa de silenciar as vozes” – tanto as interiores, quanto a da própria pessoa.

Em reconhecimento à importância das vozes, incluindo a própria voz do indivíduo, o HVM passaria a realizar congressos anuais sobre o ouvir de vozes, contando tanto com os próprios ouvidores, quanto com profissionais e pesquisadores do tema.

Organizar o apoio entre os membros se tornou um dos focos mais importantes da Hearing Voices Network, tendo essa iniciativa sido criada em consonância com os valores e necessidades dos próprios ouvidores de vozes.

Quer ler mais sobre outros temas interessantes da Saúde Mental? A gente deixa o link pra você!

O objetivo final seria o de oferecer um espaço seguro para o explorar e o compreender dessas vivências com as vozes.

A primeira rede nacional de ouvidores de vozes, por exemplo, seria lançada na Holanda no início dos anos 90, sendo o Reino Unido sua próxima cede.

Posteriormente aos eventos, um número grande de ativistas do movimento começariam a difundir e a fornecer treinamentos para profissionais da saúde mental, sempre com o buscando expandir o acesso das pessoas aos conteúdos dos novos métodos.

O HVM, na medida em que avançaria também como um movimento social, teria sua própria literatura complementar desenvolvida na época.

Maastricht

Seu primeiro livro, de Romme e Escher, “Accepting Voices”, por exemplo, defenderia uma gama diversificada de abordagens alternativas às práticas clínicas consideradas como sendo o padrão.

No livro Making Sense of Voices, Romme e Escher, consequentemente, delineariam um novo modelo de avaliação da experiência de se ouvir vozes, chamando-o de “The Maastricht Hearing Voices Interview”.

Essa ferramenta, utilizada também nos dias atuais, permitiria que se construíssem tipos de formulação psicológica que tentam determinar (1) quem / o que as vozes representariam e (2) quais problemas as vozes representariam.

Mais recentemente, no livro “Living with Voices”, seriam apresentadas 50 histórias de pessoas que aprenderam a lidar com suas vozes de maneira muito bem sucedida.

Dentro do HVM, tais testemunhos são considerados argumentos poderosos, “evidências narradas” do sucesso da abordagem.

Os princípios e valores do Hearing Voices Movement

Enquanto o HVM incorpora pessoas com uma ampla gama de expectativas e necessidades, existem alguns valores centrais pelos quais os membros em geral também o aderem.

O primeiro deles é a crença de que ouvir vozes é uma parte natural da experiência humana.

As próprias vozes não são vistas como anormais ou sinônimos de aberrações, mas sim conceitualizadas como uma resposta significativa e interpretável das circunstâncias sociais, emocionais e / ou interpessoais das pessoas.

De acordo com essa perspectiva, a capacidade de se ouvir vozes existiria em todos nós.

Para muitos ouvintes, isso é muito mais construtivo e empoderador do que diagnósticos baseados em doenças que enfatizariam a patologia, podendo induzir ao estigma, reduzir a autoestima ou mesmo levar à ênfase na eliminação da experiência.

Essa capacidade para que as vozes sejam escutadas em certas circunstâncias é confirmada por estudos sobre os efeitos da privação sensorial de eventos tais como o luto, os traumas e a ingestão voluntária de alucinógenos.

Da mesma forma como relatado nos estudos acima, as vozes são frequentemente encontradas na experiência de pessoas em amostras coletivas, sem qualquer tipo de histórico vinculado a transtornos psiquiátricos.

A esse respeito, estudos epidemiológicos sugerem que uma minoria significativa da população já teve alguma experiência em ouvir vozes pelo menos uma vez na vida.

Sob essa visão, precisaríamos parar de olhar para as vozes como sinais inevitáveis ​​de distúrbios psiquiátricos; essa mentalidade precisaria ser reavaliada diante da realidade que constatações e diversos estudos apresentam, sendo a vida positiva de muitos ouvidores o maior reflexo disso.

O segundo deles, que diversas explicações para vozes são aceitas e valorizadas, e a HVM respeita que as pessoas possam usar essas diferentes explicações para entender suas vozes e experiências.

Gosta de aprender sobre Psicologia e Saúde Mental? Assista nossos conteúdos no Youtube, conheça e se inscreva no canal!

O terceiro deles, que os ouvintes são encorajados a se apropriarem de suas vozes e experiências, definindo-as para si. Os grupos de ouvidores de vozes, por exemplo, fornecem um espaço seguro para essa exploração.

Por isso termos remetendo ao discurso clínico podem evocar certa resistência, já que esse seria encarado como um discurso incapacitante e potencialmente colonizador do ponto de vista dos próprios ouvidores.

O quarto, por acreditarem que na maioria dos casos o ouvir de vozes pode ser entendido e interpretado no contexto de eventos da vida e de narrativas interpessoais das pessoas

Especificamente, é frequentemente relatado que as vozes são precipitadas e mantidas por eventos emocionais que sobrecarregam e enfraquecem o indivíduo, com seu conteúdo, identidade e / ou momento de surgimento.

Ferramentas como a “The Maastricht Hearing Voices Interview” podem ser empregadas para compreender – e tentar resolver – os conflitos latentes que podem estar por trás da presença das vozes.

O quinto, por acreditarem que o processo de aceitação das vozes é mais eficaz do que simplesmente tentar suprimi-las ou eliminá-las.

Isso envolve aceitar as vozes como uma experiência real, honrar a realidade subjetiva do ouvinte e reconhecer que as vozes são algo com que eles – dado o suporte necessário – podem lidar com sucesso.

Por outro lado, poderia se pensar, por exemplo, que ao valorizar ativamente as vozes (por exemplo, como experiências emocionais significativas) algo contra intuitivo estaria sendo feito, como no caso de alguém que ouviria vozes angustiantes.

Mas a esse respeito, Romme e Escher propõem que as vozes seriam tanto o “problema” quanto a “solução”: um ataque à identidade, mas também uma tentativa de preservá-la, articulando e incorporando a dor emocional.

“Decifrar” os conflitos e os problemas de vida representados pelas vozes é frequentemente possível, mesmo quando as pessoas são diagnosticadas com doenças mentais complexas ou crônicas.

Como consiste no respeito a diversidade de opiniões valorizada pelo HVM, se os ouvintes optam também por tomar medicamentos antipsicóticos para gerir ou erradicar as vozes, isto também é respeitado.

A medicação, no entanto, é vista apenas como uma das muitas estratégias disponíveis. É muito importante, dentro dessa situação, que as pessoas recebam apoio para tomar suas próprias decisões sobre o tratamento e tenham as informações necessárias para fazer uma escolha consciente.

Finalmente, entende-se o suporte coletivo como um meio frutífero de ajudar as pessoas a compreender e a lidar com as suas vozes. Os grupos de suporte mútuo têm uma longa associação com o HVM, com ênfase nas prioridades do grupo, ao invés de seguir uma estrutura predeterminada.

Embora às vezes percebidas como marginais nos círculos profissionais, essas ideias estão de acordo com tratamentos psicossociais apoiados por muitos usuários e suas famílias, bem como perspectivas positivas sobre o ouvir de vozes e o impulso geral para a recuperação.

Quer ler mais sobre outros temas interessantes da Saúde Mental? A gente deixa o link pra você!

Como consequência, elas se tornaram progressivamente mais aceitas e tradicionais, como muitos dos pressupostos básicos do HVM.

Desde as associações entre ouvir vozes e traumas; a sugestão de que o conteúdo da voz é psicologicamente significativo; até a descoberta de que maiores níveis de supressão emocional estão associados a experiências de vozes mais frequentes e problemáticas;

A mudança em relação as vozes, de um sintoma genérico para algo a ser compreendido como uma experiência significativa, pode direcionar á mudança pessoal e á recuperação de vivências positivas na vida dos ouvidores.

Os desafios e as críticas enfrentadas pelo Hearing Voices Movement

Este artigo compartilha algumas opiniões positivas e fortes sobre a experiência de se ouvir vozes, da mesma forma que sobre a necessidade existente de que se altere o pensamento e as práticas psiquiátricas/clínicas contemporâneas em virtude delas.

Nesse sentido, se faz necessário que o Hearing Voices Moviment estruture seus princípios e práticas entorno desse tipo de posicionamento sobre ouvir vozes, buscando responder perguntas desafiadoras para evitar somente idealizar suas próprias ideias.

Um dos princípios mais fundamentais do HVM é o de que as vozes têm um significado pessoal, são “mensageiras” que personificam e representam problemas do mundo real.

Posto isso, por outro lado, o movimento também precisa considerar que é possível que algumas instâncias dessa experiência não tenham relevância bibliográfica e que talvez elas sejam melhor explicadas pelo uso de modelos biomédicos.

Dado que as raízes da HVM combinam ação social e protesto ao lado de tentativas de criar mais opções terapêuticas para os ouvidores, é importante desmistificar e contrapor esses dois pontos diferentes sobre ouvir vozes.

Quer ler mais sobre outros temas interessantes da Saúde Mental? A gente deixa o link pra você!

As atividades baseadas na ação social (por exemplo, a reunião de pessoas marginalizadas para compartilhar experiências e intercambiar apoio mútuo) precisam de mais evidências, para além do fato de as pessoas as considerarem úteis e capacitadoras.

Em comparação, as atividades com objetivos terapêuticos pretendidos oferecidas nos serviços clínicos exigem avaliações mais robustas e científicas para que se possa analisar sua eficácia e facilitar sua melhoria.

Alegações fundamentais para a origem do HVM,  mas baseadas em evidências limitadas, também exigem testes formais usando designs rigorosos, caso pretendam continuar sendo mais que uma ideologia a respeito do tema ouvir vozes.

O reconhecimento pelo HVM sobre a importância da narrativa pessoal para o entendimento da pessoa e dos problemas inerentes à identificação das vozes levaram-no a abraçar a identidade do “ouvidor da voz” como uma alternativa libertadora.

No entanto, por outro lado, o HVM precisa entender mais sobre os diferentes impactos desse rótulo, tanto quanto o de qualquer diagnóstico.

É, por exemplo, confinante e desconfortável para alguns? Como observado acima, a linguagem usada dentro da prática psiquiátrica convencional pode ser alienante. Seriam, a linguagem e os rótulos utilizados pelo movimento, também invasivos? Essas são questões importantes e passivas de mais estudos.

Como experiências multissensoriais, o HVM também precisa estar ciente e preparado para responder à experiência de pessoas com visões e outras sensações, para além dos fenômenos auditivos.

Pode ser importante articular esses diferentes aspectos do HVM mais claramente, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento de uma base de evidências e incorporação de abordagens dentro dos serviços de apoio.

Reflexões acerca do Hearing Voices Moviment

O Hearing Voices Moviment promove o empoderamento, a validação da experiência do ouvinte e enfatiza a fusão da compreensão individual com a solidariedade e o apoio solidário como ingredientes importantes para uma recuperação bem-sucedida.

Além da reflexão crítica sobre sua própria prática e filosofias, a perspectiva do HVM também identifica desafios para suas pesquisas e prática clínica.

Isso inclui a provisão de escolhas e informações, bem como a necessidade de que se mantenha a colaboração genuína com os ouvidores de vozes em pesquisas, não apenas para criar um clima alternativo não patologizante, mas também para fornecer novas oportunidades nas diferentes jornadas de recuperação.

Busca-se, essencialmente, a construção coletiva da autonomia do indivíduo e a melhora, tanto do seu relacionamento com as vozes quanto de sua qualidade de vida.


Texto traduzido e adaptado do artigo “Emerging Perspectives From the Hearing Voices Movement” (2014)

Quer ler mais sobre outros temas interessantes da Saúde Mental? A gente deixa o link pra você!

10 Comentários


  1. Excelente e explicativo texto… Feliz por saber que estamos incorporando este sólido e libertador movimento.

    Responder

    1. Bom dia, Priscila! Tudo bem com você?

      Eu e toda equipe CENAT ficamos muito felizes em saber que você gostou! Realmente, os princípios do Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes são libertadores para que as ouve e também para quem não. Esperamos que tenham te ajudado de alguma forma no seu trabalho ou na sua vida como um todo! Muito obrigado por estar com a gente! Um grande abraço!

      Responder

  2. Boa noite. Sou EdileuzaEu sou um ouvinte de vozes e gostari a como devo me comportar diante delas? Pois eles me machucam me chocam o dia todo. Estou tomando remédios controlados, mas elas continuam na minha cabeça.

    Responder

  3. Boa tarde!

    Qual é o primeiro passo a ser dado para uma pessoa que começa a ouvir vozes?
    acompanhamento psicológico ajuda?
    é possível fazer acompanhamento sem remédios?

    meu e.mail:lourdesxs80@gmail.com

    Responder

  4. Queria saber sobre grupos funcionando. Não estou achando informações sobre isso

    Responder

  5. Ola eu tanbem escuto vozes e elas min ameasao e as pessoas que eu escuto elas parensen ver os meus pensamento e eu jacheguei a conversa com elas e elas min torturan com os meus erros do pasado

    Responder

  6. Olá bom dia a todos e todas.
    Estou terminando meu TCC e gostaria de saber mais informações de como devo referenciar corretamente o – Guia Como trabalhar com pessoas que ouvem vozes
    Paul Baker (INTERVOICE – Manchester)
    Em que ano Baker escreveu e foi publicado por vocês?

    Responder

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *