Projeto Terapêutico Singular (PTS): no Cuidado em Saúde Mental

“A prova de que estou recuperando a saúde mental, é que estou cada minuto mais permissiva: eu me permito mais liberdade e mais experiências. E aceito o acaso. Anseio pelo que ainda não experimentei. Maior espaço psíquico. Estou felizmente mais doida.”

Clarice Lispector

Breve contexto histórico da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial

No Brasil, a Reforma Psiquiátrica trouxe importantes avanços no campo da Saúde Mental, como o processo de desinstitucionalização, caracterizado pela redução de leitos em hospitais psiquiátricos e implantação de serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico.

Tais mudanças priorizam tratamentos e cuidados capazes de manter a convivência familiar e social, oferecendo acolhimento integral e promoção dos direitos humanos no âmbito da atenção primária à saúde.

Um dos marcos dessa mudança foi a Lei n° 10.216 de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

Outro marco foi a regulamentação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em 2011, que descreve os serviços e dispositivos, além de ações de atenção psicossocial no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

De acordo com Oliveira et al (2021), a RAPS tem como finalidade prever a criação, ampliação e articulação entre os serviços de atenção à saúde e à saúde mental para pessoas em sofrimento psíquico.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são serviços de saúde municipais, abertos e comunitários, que oferecem atendimentos diários; organizados em cinco modalidades conforme público, horário de funcionamento e tamanho do município.

Os CAPS devem ser circunscritos ao espaço de convívio social das usuárias e dos usuários e objetivam oferecer acompanhamento clínico e integração social, pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários.

Na RAPS (BRASIL, 2011), as equipes de saúde devem cuidar e fazer a reabilitação psicossocial daqueles que padecem com intenso sofrimento psíquico num determinado território.

Os serviços se caracterizam pelo trabalho interdisciplinar da equipe técnica, sendo esta responsável por acolher, escutar e oferecer possibilidades terapêuticas no cuidado para pessoas em sofrimento psíquico e seus familiares.

Como apontam Garcia et al (2014), a construção de uma rede comunitária de cuidados é fundamental para a consolidação da Reforma Psiquiátrica.

A articulação dos pontos de atenção – Estratégia Saúde da Família, Núcleo de Apoio à Saúde da Família, Equipe de Consultório na Rua, Centro de Convivência e Cultura, CAPS, Unidades de Acolhimento, Serviços de Atenção em Regime Residencial, de Atenção Hospitalar e Residencial Terapêutico – constitui um conjunto de referências capazes de acolher a pessoa com sofrimento psíquico.

Com a consolidação da RAPS, muitas experiências de transformação foram (e ainda são) revistas ou iniciadas. O projeto Terapêutico Singular (PTS) é uma dessas experiências de transformação do cuidado.

Origem do Projeto Terapêutico Singular (PTS): discutindo conceitos

Diniz (2020) descreve que foi através da Portaria n° 147 de 1994 que o Ministério da Saúde institui o (na época chamado) Projeto Terapêutico (PT). Nesta época, o conceito do PT era:

“um conjunto de objetivos e ações, estabelecidos e executados pela equipe multiprofissional, voltados para a recuperação do usuário, desde a admissão até sua alta, bem como instituir o desenvolvimento de programas específicos e interdisciplinares, adequados à característica da clientela, visando compatibilizar a proposta de tratamento com a necessidade de cada usuário e de sua família. Envolve, ainda, a existência de um sistema de referência e contrarreferência que permita o encaminhamento do paciente, após a alta, para a continuidade do tratamento.” (p. 14)

Em 2010, o Ministério da Saúde lança a Cartilha “Clinica Ampliada e Compartilhada”, através da Secretaria de Atenção à Saúde e da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS (Sistema Único de Saúde). Tal documento traz como conceito do PTS como sendo:

“um conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, para um sujeito individual ou coletivo, resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar, com apoio matricial se necessário. Geralmente dedicado a situações mais complexas.” (p. 40)

O que nos chama a atenção nesses conceitos é que esse PTS era “estabelecido e executado” pela equipe de profissionais para a usuária/o usuário, não sinalizando em nenhum momento a importância da participação da mesma/do mesmo e nem de seus familiares na elaboração de seu plano de cuidado, mesmo apontando que este deveria ser adequado à clientela.

Além disso, era para ser utilizado pelas equipes de profissionais da Estratégia de Saúde da Família (ESF), por entender que essa é a equipe de referência no cuidado às demandas de saúde dos usuários do SUS.

Para Depole (2018) o PTS é “uma ferramenta do cuidado em saúde utilizada pela equipe interdisciplinar em discussões de casos em que diversos profissionais contribuem com a elaboração e implementação de um plano de assistência individualizada e contínua de acordo com a demanda da usuária/do usuário”.

Inicialmente chamado também por alguns autores como Projeto Terapêutico Individual (PTI), podendo ser construído e executado pelo profissional tanto para um indivíduo quanto para um grupo, a configuração mais próxima do que seja o Projeto Terapêutico Singular (PTS, de acordo com Diniz (2020), surge apenas no início da década de 1990, com fortes influências do movimento de Reforma Psiquiátrica advindo da Itália.

Importante ressaltar que o PTS, a partir das demandas e das mudanças de paradigmas no cuidado e assistência em saúde mental advindos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, foi bastante desenvolvido nos dispositivos substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, como forma de proporcionar uma atenção e atuação integrada da equipe interdisciplinar, valorizando outros aspectos no cuidado às usuárias/aos usuários para além do diagnóstico psiquiátrico e da medicação.

Portanto, o PTS deve ser reflexo de uma troca de afetividade e acolhimento entre a equipe interdisciplinar do serviço, a usuária/o usuário e seus familiares, através de uma escuta ativa, precisa e amplificada para além dos sinais terapêuticos.

Etapas da construção do PTS: desafios e potencialidades

Diversos são os roteiros encontrados na literatura para a elaboração de um PTS, porém todos devem levar em consideração diversos aspectos:

  1. a) O PTS não deve ser algo estanque, ou seja, não deve focar apenas no aspecto clínico e no cuidado específico e sim ir além do diagnóstico (esse sim torna o cuidado estanque), pensando nos diversos aspectos da vida do sujeito em sofrimento psíquico e seus familiares: social, econômico, político, religioso, espiritual, laboral, entre outros tantos;
  2. b) O PTS é um plano de cuidados que se projeta por uma cogestão entre a equipe interdisciplinar, a usuária/o usuário e seus familiares. Deve-se incluir o sujeito nas decisões, nas definições das atividades propostas, no trabalho e no próprio gerenciamento de sua autonomia;
  3. c) O PTS é uma estratégia terapêutica que deve ser iniciada com acolhimento, empatia e vínculo com o sujeito. Apesar de muitas vezes o serviço apontar um profissional de referência para ser responsável direto pelo cuidado e assistência oferecidos, deve-se lembrar que todes profissionais possuem papel fundamental no oferecimento desse cuidado, cada um no seu campo de saber, sempre somando para que seja um cuidado de qualidade e com resolubilidade;
  4. d) O PTS precisa ter ações terapêuticas clínicas, atividades e processos que vão além do espaço do serviço, sempre voltadas para as questões do sujeito. O PTS deve ser contemplado não só com atividades do CAPS, Hospital-Dia, Centro de Convivência, etc.., como também deve-se incluir ações no território e na comunidade do indivíduo, articulando diversos serviços e níveis de atenção à saúde na busca de um cuidado integral.

Para o Ministério da Saúde (2010), o PTS deve ser construído das seguintes etapas para sua elaboração:

1) Diagnóstico: este deverá conter uma avaliação orgânica e psicossocial, que possibilite a conclusão a respeito dos riscos e da vulnerabilidade da usuária/do usuário, devendo captar como o sujeito em sofrimento psíquico se vê diante de aspectos e forças como doenças, desejos e interesses, bem como trabalho, cultura, família e sua rede social;

2) Definição de Metas: uma vez que a equipe interdisciplinar tenha feito os diagnósticos, esta elabora propostas de curo, médio e longo prazos, que serão apresentadas, discutidas e negociadas com o indivíduo pelo profissional da equipe que tiver um melhor vínculo;

3) Divisão de Responsabilidades: etapa onde é importante definir as tarefas de cada um dos envolvidos no cuidado (usuária/usuário, familiares e profissionais) com bastante clareza, objetividade e compreensão;

4) Reavaliação: momentos em que se discutirá a evolução do cuidado e se farão as devidas correções de rumo. Diversas são as estratégias para que essa etapa ocorra, podendo acontecer quantas vezes forem necessárias, semanalmente ou quinzenalmente, em reuniões e espaços específicos para tratar do PTS.

Tavares et al (2021), apontam que a construção do PTS se dá através de três passos importantes:

à Identificação do início da relação do sujeito com seu sofrimento psíquico, ou seja, em que circunstâncias e momentos a usuária/o usuário procurou o serviço e qual sua trajetória de vida anterior;

à Construção de uma cartografia da vida da usuária/do usuário e seu contexto. Nessa etapa procura-se entender sua história, sua trajetória de vida, suas relações com outras pessoas, suas fragilidades, possibilidades e potencialidades;

à Criação de um mapa multidimensional da vida da usuária/do usuário que deve conter detalhes das condições financeiras e materiais do indivíduo, bem como possíveis vulnerabilidades e riscos.

Com isso, o PTS proporciona uma atuação integrada e singular do cuidado em saúde e em saúde mental a partir de vários aspectos relevantes para a vida daquela pessoa que vão além do “diagnóstico psiquiátrico e das medicações em uso”. Permeia suas histórias, vivências e níveis de entendimento, consistindo em uma ferramenta de trabalho única, construída coletiva e exclusivamente para aquele indivíduo. (TAVARES et al, 2021)

(In)Concluindo…

Não há receita pronta para a construção de um PTS que seja totalmente efetivo e eficaz no cuidado oferecido à pessoa em sofrimento psíquico, porém, é certo, que este deve conter alguns “ingredientes” importantes, tais como: o acolhimento, a escuta, a empatia e o vínculo.

Procurar conhecer as particularidades e singularidades do sujeito, perguntando sobre “seus medos, raivas, manias, temperamentos, sono e sonhos” (BRASIL, 2010) são questionamentos fundamentais que nos ajudam, enquanto profissionais do cuidado em Saúde Mental, entender e compreender um pouco mais a dinâmica e as características da usuária/do usuário. São perguntas e indagações que possuem importância terapêutica, possibilitando a ligação de aspectos singulares da vida dessa pessoa com o projeto terapêutico.

Além disso, o PTS ajuda a pessoa em sofrimento psíquico descobrir o sentido deste sofrer para ela/ele naquele momento de sua vida.

A simples pergunta inicial, por exemplo, “por quê você acha que adoeceu ou por quê apresenta estes sentimentos”, ajuda tanto o profissional quanto o sujeito a compreenderem quais são suas reais necessidades naquele momento e guia ambos (junto com familiares desta usuária/usuário) nos caminhos que esse cuidado individual, singular, único e personalizado deve seguir.

Outra questão bastante importante para o PTS é a efetiva participação da usuária/do usuário e sua família no processo de construção desse plano de cuidados, pensando em momento e atividades para além dos muros do serviço em que buscou ajuda.

Devem ir além do serviço especializado, passando pela Atenção Primária, pela cooperativa do seu bairro, para o território, para sua comunidade, para a vida.

Dessa forma, quanto mais espaços ampliarmos o alcance desse PTS, de acordo com as reais demandas do sujeito, mais empoderado este se sentirá e mais efetivo e exitoso o plano de cuidados será.

O cuidado em saúde mental, através da construção do PTS, deve priorizar o resgate da autonomia, cidadania e direitos de pertencimento à sociedade dessa usuária/desse usuário, não só através do olhar alheio para suas limitações (presentes em todos nós e nos nós de nossas vidas), mas, principalmente, através do olhar mais atento para todas as suas potencialidades.

Referências Bibliográficas

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– DEPOLE BF. A produção brasileira sobre o Projeto Terapêutico Singular: revisão de escopo. Dissertação (Mestrado em Terapia Ocupacional) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/10878

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9 Comentários


  1. Educação física e saúde mental a importância do profissional

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  2. Adorei o artigo meu grande amigo Claudio Gruber Mann, contribuiu muito! estou trabalhando no Caps IIAD , amo meu trabalho, e faz todo sentido: “ingredientes” importantes, tais como: o acolhimento, a escuta, a empatia e o vínculo. Grande abraço

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    1. Chelida querida, obrigado pelo carinho. Muito bom saber que você está em um serviço fruto da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial!!! Que possamos ter mais profissionais como você onde tais “ingredientes” fazem todo o sentido e são usados na clínica do cuidado e na vida! Bjs

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