A rede como suporte e apoio no cuidado em saúde mental

Se continuarmos a repetir que não sabemos nada sobre a loucura é que poderemos abrir nosso olhar, abrir nossa mente, abrir nosso corpo, abrir a cidade aos loucos. E a partir deste ato, poderemos começar finalmente a nossa história.

(Amarante, 2008)

A Lei 10.216/01 (Brasil, 2001) foi o marco para a nova Politica de Saúde Mental brasileira, que modificou o modelo de cuidado com enfoque no tratamento em hospitais e na remissão de sintomas por uma rede de serviços e estratégias substitutivas de abordagem na pessoa e sua interação interpessoal no mundo da vida, com ações intersetoriais, na comunidade.

O cuidado na psiquiatria ao longo da história foi a preocupação de observar e intervir nos fenômenos patológicos, distanciando de outros fenômenos, como a subjetivação, singularidade, o contexto, que se relacionam por um elenco de atores que transitam no mundo da vida de uma pessoa.

A necessidade técnica de apenas aliviar sintomas, pelo viés apenas da cura, minimizando outras dimensões não gera necessariamente a reabilitação psicossocial regulamentada na politica de saúde mental.

Mas o que é reabilitação psicossocial?

É importante inserir este conceito dentro de uma lógica não somente desinstitucionalizada e não hospitalocêntrica, mas também de construção psicossocial, ou seja, única de cada realidade do sujeito no seu mundo da vida social, sem impor a normatizações de valores próprios (técnicos-profissionais), comum na lógica biomédica, por exemplo, quando introduzimos no cuidado a classificação de signos, correção de defeitos, supressão de agentes de mudanças, compensação de carências, controle de desequilíbrio, manutenção do quadro, intervir, adequar, organizar e tantas outras formas de pensar pelo único viés da doença.

Saraceno (2001) conceitua reabilitação como “conjunto de procedimentos que procuram aumentar as habilidades (ou diminuir as desabilitações) e diminuir a deficiência; não acontece reabilitação com simultaneidade das duas ações, sobre a desabilitação e sobre a deficiência” (p. 33). Afirma que a ideia de deficiência ou desabilitação da pessoa é reconhecida por meio das respostas que a organização social dá a mesma.

O psicossocial pelo sentido etimológico (psiquê = mente +social), torna-se mais fácil abarcar a compreensão psicológica do mesmo, na qual relaciona está relacionado com a sociedade e com a conduta social do ser humano.

Assim o termo reabilitação psicossocial é uma clinica que consiste numa nova forma de agir ativamente em outras dimensões do sujeito. Ir além do sujeito biológico para o psicológico produzindo vivências sociais no cotidiano, valorizando a singularidade e a promoção da vida social, por meio de atores de suporte e cuidado em rede, no território, evitando a desinstitucionalização (e não somente a desospitalização) e o cuidado integral.

Portanto é importante que profissionais façam a reflexão apresentada por Pitta (1996) de que:

A reabilitação psicossocial não pode ser uma empulhação, uma enganação, um pretexto para deixar pessoas entretidas, fazendo de conta que a vida está sendo vivida, e concluindo que é um argumento forte, ao lado de outros fortes argumentos, por uma ética da sinceridade (p. 10).

Nesses 20 anos do modelo psicossocial da saúde mental instituído pela politica houve uma evolução no entendimento que a reabilitação psicossocial está no cuidado realizado por uma rede formada de serviços diversos, mas também de pessoas que transitam nesta rede.

Na politica de saúde mental os serviços e estratégias substitutivas foram apresentadas em um fluxo de Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, por meio das Portarias 3.088 e 3.588 (Brasil, 2011, 2017), na qual a pessoa está no seu mundo da vida, no território, se beneficiando de uma rede de cuidado em saúde mental, como ilustrado na Figura 1.

Figura 1: Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Fonte: Ministério da Saúde, 2011, 2017).

O termo rede tem sido expressivamente utilizado na atualidade, não somente inclusos nas políticas públicas de saúde e assistência, mas pelos movimentos sociais, Organizações não Governamentais, tecnologias, entre outros, considerado uma temática de vasto estudo na sociologia, antropologia, psicologia, tornando, portanto, um paradigma que norteia o pensamento contemporâneo.

Amarante (2008) afirma que a rede social pode (e deve) ser uma estratégia que possibilite oferecer outra dimensão de cuidado para o sujeito. O ponto de partida deve ser o campo da saúde e a atenção psicossocial, como um processo social amplo e complexo, de sujeitos singulares, e seus processos histórico social.

Alguns conceitos de redes são apresentados como reflexões significativas no cuidado da clinica em saúde mental. Fleury (2007), refere como uma conectividade entre as pessoas para criar vínculos.

E justifica que “as redes então são as linguagens dos vínculos em níveis, representados por ações que geram formas de expressão subjetiva” (p. 20). Sluzki (1997) refere que “a rede social inclui todas as relações pessoais significativas do individuo. É responsável pela experiência de identidade, competência, agenciamento, e capacidade adaptativa em momento de crise” (p. 47).

Para Saidon (2008), rede é “a promoção do trabalho com as redes tem o sentido, justamente, de possibilitar o surgimento de um pensamento que, diante do caos ou da complexidade social, ofereça uma resposta criadora e própria do tempo em que vivemos” (p. 166).

Para além da RAPS, o modelo psicossocial enfoca a importância do cuidado ser desenvolvido também por uma rede de apoio e cuidado, não podendo ficar limitado a rede de serviços de saúde. Enfim, quais poderiam ser então as outras redes de cuidado no mundo da vida da pessoa? Destacamos as diversas formas de redes de apoio e cuidado:

(1) A rede intersetorial, ou seja, os serviços da comunidade e das diversas politicas publicas que poderiam relacionar a uma pessoa, por exemplo, igreja, escola, pontos comunitários, CREAS, Centro pop, delegacia, ponto de trabalho entre outros;

(2) A rede de apoio primário e suas respectivas interrelações com outros atores da rede, como a família, amigos, vizinhos, animais de estimação, considerada família circunstancial da pessoa, na qual possui como fundamento primeiro o convívio diário; e

(3) Rede especifica considerada pela pessoa que recebe o cuidado, que tem significado representação nas formas de relação e apoio.

Portanto, quando pensamos no modelo psicossocial de cuidado em rede devemos associar em três tipo de rede: especifica de representação da pessoa em si, da família circunstancial na qual a pessoa faz parte e de serviços de atenção psicossocial (de saúde), intersetorial e comunitária.

Nas duas primeiras, o enfoque será construído com a pessoas e a família circunstancial, ambos envolvidos no cuidado no processo de trabalho, enquanto que na terceira será discutido junto a pessoa e equipe, como uma gestão clinica nos serviços, afinal cada serviço deve atuar numa relação de compartilhamento de cuidado com outros serviços de saúde e intersetorial.

Figura 2: Redes de apoio e cuidado em saúde mental

A rede de apoio e suporte em saúde mental é formada por atores que se ligam de diversas formas de integração e funcionamento, numa dinâmica interrelacional. São estes: a família circunstancial, a família extensa, o circulo social, o cotidiano de atividades, os serviços de saúde, serviços das politicas intersetoriais, a demanda comunitária, o lazer, a religião, amigos e vizinhos, animais de estimação, o trabalho e o movimento social.

Sluzki (1997) afirma que esta relação pode promover “círculos virtuosos e círculos viciosos” e respectivamente saúde e doença. Mas que, independente da dinâmica da rede, a retroalimentação (uma dinâmica de ações entre os atores) é funcional na saúde mental, pela capacidade de se tornar flexível e permitir mudanças.

A situação de uma crise psíquica que um sujeito vivencia é promotora de diversas consequências que afetam, por exemplo suas múltiplas relações no cotidiano, e que, portanto, é em si, desestruturante da dimensão social.

É importante no cuidado evitar  ser restrito na retirada do sintoma e retorno à forma anterior deste sujeito, mas deve-se valorizar a própria construção de cotidiano social da pessoa e sua família, com suas interrelações, promovendo no cuidado a possibilidades de uma dinâmica na rede.

Vieira Filho (1998) afirma que existe um risco permanente em ações terapêuticas de reprodução de um circuito de interação patógenas e de cuidado da crise na remissão do signo psicopatológico. Neste sentido, é importante entender que o complexo contexto de crise apresenta consequentemente demandas de cuidados também complexas singulares, criteriosas e flexíveis.

Na psicose, por exemplo, ocorre um decurso de contextos pesados, principalmente no funcionamento social, à família, à densidade e à homogeneidade da rede significativa da pessoa.

Essa enorme massa de informações leva a afirmar que a cronificação e o empobrecimento (em sentido amplo) do psicótico são resultados não necessariamente intrínseco à doença, mas a uma constelação de variáveis que podem ser modificadas e orientadas no processo de intervenção.

Como se vê são variáveis ligadas aos contextos microssociais (família e comunidade) e pressupõem: estratégias de manejo ambiental que se encontram distantes das estratégias comuns propostas pelo modelo psiquiátrico biomédico (Saraceno, 2001. p. 30).

Portanto, a rede é tomada como um agir conceitual de cuidado do modelo psicossocial da politica de saúde mental, como uma atitude técnica, especifica do profissional, com intervenções que valorize a inclusão dos atores de rede no cuidado.

A clinica da rede no cotidiano dos serviços permitem minimizar o “circuito psiquiátrico” (Dell’acqua, 2003) e investir no “circuito dinâmico peripatético” (Lancetti, 2006), de uma série de experiências clínicas, realizadas fora do consultório e inserida na comunidade e vivência dos indivíduos, ativando o trânsito que vai do exílio à cidadania.

 

Referencia

Amarante, P. (2008). Saúde mental, formação e critica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

Brasil. Ministério da Saúde.  (2001). Lei 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

Brasil. Ministério da Saúde. (2011).  Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 26 dez.

Brasil. Ministério da Saúde. (2017). Portaria N. 3.588, de 21 de dezembro de 2017. Altera as Portarias n. 3 e n. 6 de dispor sobre a rede de atenção psicossocial, e da outras providências. Disponível em:https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt3588_22_12_2017.html

Dell’acqua, G. & Mezzina, R. (1999). Resposta à crise: Estratégias de intencionalidade da intervenção no serviço psiquiátrico territorial. In Amarante, P. A loucura na sala de Jantar. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.

Fleury, S. (2007). Gestão em redes: a estratégia de regionalização da política de saúde. Rio de Janeiro: Editora FGV.

Lancetti, A. (2006). Clinica Peripatética. Saúde e Loucura 20. Série Políticas do Desejo1. São Paulo: Hucitec.

Pitta, A. (1996). Reabilitação Psicossocial no Brasil, hoje? In:____ (org.). Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo, SP: Editora Hucitec, 1996b. p. 19-26.

Saidón, O. (2008). Devires da clinica. São Paulo: Aderaldo & Rothschild.

Saraceno, B. (2001). Libertando Identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. 2ª edição. Rio de Janeiro: Te corá Editora.

Sluzki, C. (1997). A rede social na prática sistêmica. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Vieira filho, N. (1998). Clinica Psicossocial: terapias, intervenções, questões teóricas.Recife: Ed. Universitária da UFPE.

 

 

 

2 Comentários


  1. Excelente! Parabéns pelo texto! Acabo de repassar para meus pares da RAPS.
    Só gostaria de fazer 1 apontamento.
    O texto cita “evitando a desinstitucionalização e desospitalização”. Não houve aí um erro de digitação, trocando a palavra promovendo por evitando?
    Comento como contribuição já que todo o restante está ótimo.

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