No Brasil, a saúde da família é considerada um dos pontos chave da atenção básica, comportando a maior parte da população brasileira nesse quadrante, que é composto por idosos, adultos, crianças e jovens de todas as idades, em resumo, parte fundamental da base social brasileira e de todo país.
Ao longo dos anos, com a expansão da saúde pública por meio das instituições e dos atendimentos de base na saúde, tem-se também a expansão da importância em cuidar das pessoas, principalmente as mais pobres, com a melhora nos índices de satisfação, promoção de direitos e bem-estar da população como um todo.
Ainda se debate sobre a situação da família nos atendimentos, sobre como esse elemento tão importante deve ser tratado e sobre como os profissionais devem estar preparados para abordar essas pessoas, dada a complexidade dos diferentes contextos e situações socioeconômicas vividas por cada núcleo.
Nossa intenção é contribuir um pouco mais para essa linha de estudo, trazendo algumas informações relevantes sobre esse tema que é fundamental não só para a saúde, mas para todos os ramos desde a pesquisa, passando pela política e chegando nos tratamentos públicos e educação
Uma breve história sobre as políticas de atenção à saúde no Brasil
De acordo com Rosa e Labate (2005), as estratégias de saúde propostas pelo governo, tal como mostraria a história do Brasil, nem sempre teriam visado o bem-estar da população, privilegiando outros setores públicos e sociais, normalmente ligados a fatores econômicos e ao interesse de poucos no país.
Iniciando uma linha do tempo, a princípio com a Primeira República Brasileira (1889-1930), os autores afirmam que as metas do governo em relação a saúde estariam focadas na limpeza e saneamento de portos e núcleos urbanos, com o intuito de manter condições sanitárias mínimas para implementar relações comerciais com o exterior.
Na década de 30, já no período populista de Getúlio Vargas, a saúde seria centralizada nos planos de Seguro Social, que mantendo a desigualdade e o acesso seletivo, faziam dos assalariados e de trabalhadores dos serviços públicos seus beneficiários por meio de empresas isoladas, como em uma espécie de convênio.
Nesse sentido, até esse momento da história, pode se afirmar que a atuação pública em saúde estava concentrada em medidas de alcance coletivo, pouco amplo, entendida a pouca prioridade dada a esse setor dentro das políticas socioeconômicas dos primeiros estados brasileiros.
A situação do acesso não se altera muito durante os anos 70, quando é construída uma nova estrutura de saúde privada financiada em parte pelo Estado. A grande mudança aqui consiste na separação da assistência médica do sistema de seguridade social com status de benefício, agora para ser encarada como uma demanda/necessidade popular.
A mudança vem com a participação do Brasil na Conferência sobre Cuidados Primários de Saúde em 1978, algo que, de fato, abriria margem para alterações na saúde, haja visto os debates e planos mundiais para a saúde nesse âmbito.
Nesse contexto, o CONASP, em 1982 – poucos anos depois – propõe um plano de reorientação da assistência à saúde no âmbito da previdência social. Assim, as políticas de saúde no Brasil passam a ser descentralizadas, universalizadas e hierarquizadas, para logo assumirem, já em 1985, a forma da política de Ações Integradas de Saúde (AIS).
O início da grande transformação vem com a promulgação da Constituição de 1988 que estabeleceria como lema a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, garantindo, pela primeira vez em forma de lei, o acesso à população à saúde no que dissesse respeito aos âmbitos da prevenção, promoção e recuperação de quadros.
A partir desse período, várias iniciativas institucionais legais e comunitárias foram criando condições de viabilização do direito à saúde de acordo com a Lei 8.080/90 – “Lei Orgânica da Saúde”, promulgada pelo Ministério da Saúde, e que passou a regulamentar os tratamentos pelo Sistema Único de Saúde (Rosa e Labate, 2005).
Segundo essa Lei, a saúde não seria somente a ausência de doenças, mas sim seria determinada por uma série de fatores presentes no dia-a-dia, tais como: alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, educação, lazer etc.
É nesse contexto, por exemplo, que se dá o surgimento do Programa Saúde da Família (PSF), com propostas para mudar toda a antiga concepção de atuação dos profissionais de saúde, saindo da medicina curativa e passando a atuar na integralidade da assistência, tratando o indivíduo como sujeito dentro da sua comunidade socioeconômica e cultural (Lecovitz e Garrido, 1996 apud Rosa e Labate, 2005).
O Programa Saúde da Família e a mudança do modelo assistencial à saúde
O Programa Saúde da Família, desde a sua origem, teria sido idealizado como um programa para dar início a reorganização e fortalecimento da atenção básica como o primeiro nível de atenção à saúde no SUS, mediante a ampliação do acesso, a qualificação e a reorientação das práticas de saúde (Sousa e Hamann, 2009).
Sua concepção deu-se conforme a atuação dos profissionais participando do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), criado pelo Ministério da Saúde em 1991, com o intuito de diminuir a mortalidade infantil e materna nas regiões Norte e Nordeste do Brasil por meio da extensão dos cuidados em saúde nas áreas mais pobres.
A experiência com o PACS renderia resultados positivos e o Ministério perceberia a importância dos agentes da saúde nos serviços da atenção básica e o impacto do trabalho realizado na vida das pessoas. Nesse contexto, a família passa a ser colocada em primeiro lugar nas ações programáticas de saúde subsequentes, então embasadas pelos princípios do SUS.
Apesar de ter sido concebido como um Programa por alguns anos, o PSF transforma-se em Estratégia Saúde da Família com o tempo por suas características fundamentais de integração e promoção de atividades em saúde dentro de territórios definidos, com o propósito de enfrentar e resolver questões específicas desses espaços e de seus grupos residentes.
A ESF seria, dessa forma, um elemento reorganizador da prática assistencial no Brasil, que antes, estritamente centrada no atendimento hospitalar, individual e no modelo biomédico, passa a ter como foco a família, o conjunto de seus membros, seus anseios e o relacionamento que estabelecem com os ambientes físico e social nos quais se encontram, assim como com os próprios profissionais do atendimento.
A partir dessa idealização, o Ministério da Saúde passa então a fomentar um modelo de saúde que se baseia até hoje no reconhecimento da própria saúde como um direito de cidadania a ser expresso na melhora das condições de vida das pessoas e das famílias, sempre por meio de serviços resolutivos, integrais e, principalmente, humanizados.
Em suma, o PSF deixa de ser um programa que operacionalizava uma política somente de focalização da atenção básica em populações excluídas do consumo de serviços, para ser considerado uma estratégia de mudança do modelo de atenção à saúde no SUS; um instrumento de uma política de universalização da cobertura da atenção básica de abordagens voltadas para a família (Teixeira, 2003 apud Sousa e Hamann, 2009).
De acordo com Sousa e Hamann (2009), o caráter substitutivo do PSF em relação à “atenção básica tradicional” passa a se orientar pelos seguintes princípios:
1) Mapeamento dos usuários
2) Territorialização
3) Diagnóstico da situação de saúde da população
4) Planejamento baseado na realidade local
A lógica da atenção básica à saúde e as estratégias de protagonismo familiar
A Estratégia Saúde da Família (ESF), eixo estruturante da Atenção Básica à Saúde, concebe a família de forma integral e sistêmica, como espaço de desenvolvimento individual e grupal, dinâmico e passível de crises, inseparável de seu contexto de relações sociais no território em que vive (BRASIL, 2013).
A família é, ao mesmo tempo, objeto e sujeito do processo de cuidado e de promoção da saúde pelas equipes de Saúde da Família. Na ESF o vínculo entre os profissionais de Saúde, a família e a comunidade é concebido como fundamental para que as ações da equipe tenham impacto positivo na saúde da população.
Esse vínculo de confiança vai sendo fortalecido por meio da escuta, do acolhimento, da garantia da participação da família na construção do bem-estar e da valorização da família enquanto participante ativa de qualquer tratamento.
Na metodologia de trabalho das equipes de SF, o cadastramento das famílias e o diagnóstico da situação de saúde da população permitem que os profissionais prestem atenção diferenciada às famílias em situação de risco, vulnerabilidade e/ou isolamento social (BRASIL, 2013).
A Estratégia Saúde da Família, por ter como ação as visitas mensais aos moradores de uma determinada área, possibilita também que pessoas e famílias em situação de maior risco sejam atendidas.
Essa organização facilita o acesso a todas as informações da família, sua história, queixas ou motivos das consultas, atenção recebida, problemas e formas de enfrentamento, dinâmica de relacionamento familiar etc. (BRASIL, 2013).
As reuniões de equipe possibilitam a discussão de casos, o planejamento e avaliação de ações, a troca de conhecimentos, a abordagem interdisciplinar, constituindo-se em mais um recurso fundamental do cuidado em saúde mental.
Assim, a família também contribuirá na construção, na implementação e no acompanhamento de políticas públicas de atenção à saúde. Em síntese, as equipes de SF têm um campo fértil para trabalharem de forma integral e participativa com pessoas em sofrimento e suas famílias, e vice-versa.
Família e sofrimento psíquico: O desafio do protagonismo familiar
A reforma psiquiátrica brasileira traz imensas contribuições na forma de conceber e perceber a família no contexto do cuidado em saúde mental. Antes de sua implementação, a forma de tratamento disponível para as pessoas em sofrimento psíquico era baseada no isolamento e na exclusão, sendo os sujeitos privados do contato com sua família e com a sociedade.
Não havia investimentos na mobilização das famílias como participantes importantes no tratamento, já que o indivíduo era visto de maneira isolada e como um doente apenas.
A principal diretriz da Política Nacional de Saúde Mental, inspirada na reforma psiquiátrica brasileira, consiste na redução gradual e planejada de leitos em hospitais psiquiátricos, priorizando concomitantemente a implantação de serviços e ações de saúde mental de base comunitária, capazes de atender com resolubilidade os pacientes que necessitem de atenção (BRASIL, 2005).
Dentro dessa perspectiva, a família é requisitada como parceira dos novos serviços e reafirmada como um dos possíveis espaços do provimento de cuidado (Rosa, 2004 apud BRASIL, 2013), passando a ser concebida como necessária e aliada no cuidado de seu familiar em sofrimento psíquico.
Dessa forma, o que se almeja não é simplesmente a transferência da pessoa com sofrimento mental para fora dos muros do hospital, entregando-o aos cuidados de quem puder assisti-lo ou largando-o à própria sorte.
Espera-se o resgate ou o estabelecimento da sua cidadania, “o respeito a sua singularidade e subjetividade, tornando-o como sujeito de seu próprio tratamento sem a ideia de cura como o único horizonte. Espera-se, assim, a autonomia e a reintegração do sujeito à família e à sociedade” (Gonçalves; Sena, 2001, p. 51 apud BRASIL, 2013).
Considerar a família como protagonista do cuidado reabilitador é um verdadeiro desafio. Ao acolher suas demandas e dificuldades de convívio com um familiar em sofrimento psíquico intenso, o profissional promove o suporte possível para as solicitações manifestas (Colvero et. al., 2004 apud BRASIL, 2013).
Essas famílias possuem demandas das mais variadas ordens, entre elas: a dificuldade de lidar com as situações de crise, com os conflitos familiares emergentes, com a culpa, com o pessimismo por não conseguir vislumbrar saídas para os problemas, pelo isolamento social a que ficam sujeitos, e outras tantas demandas e dificuldades.
Torna-se fundamental considerar que o provimento de cuidado doméstico à pessoa com sofrimento psíquico é um trabalho complexo, historicamente retirado da família e que agora lhe está sendo restituído.
Esse cuidado requer disponibilidade, esforço, compreensão, capacitação mínima, inclusive para que os cuidadores encontrem estratégias para lidar com frustrações, sentimentos de impotência e culpa, ou seja, com suas próprias emoções.
Os problemas do modelo assistencial e os desafios da ESF
Como é sabido pela comunidade de servidores da saúde no Brasil, especialmente entre aqueles que tentam romper os modelos tradicionais de tratamento, um dos problemas atuais do modelo assistencial consiste na prevalência em muitos lugares da atividade medico-centrada, que deixa de lado a multidisciplinariedade pressuposta pelo SUS.
Pode-se dizer, conforme nos explicitam Rosa e Labate (2009) em trabalho datado mas ainda muito atual, que na prática cuidadora da ESF ainda existe uma confusão entre o que seriam ferramentas para diagnósticos e intervenções e o que seriam, de fato, resultados em saúde.
A ideia disposta aqui diz respeito a necessidade evidente que se tem de que, para que continuem havendo mudanças no modelo de atenção à saúde, é necessário que se forme um “novo profissional”, que esteja alinhado com os princípios humanísticos do SUS – seja por meio da faculdade ou de cursos de atualização – e os preserve, preservando assim a saúde da família.
Busca-se, dessa maneira, uma maior e melhor transição entre o profissional isolado em sua prática, tanto em relação a atuação quanto em relação aos seus saberes, para um trabalho e posicionamento dentro de equipes formadas nos centros de saúde, abrindo novas vertentes de conhecimento, cuidados e vínculos sociais.
Assim, verifica-se a necessidade de reorganizar a rede de poderes e dos processos de trabalho de modo que as equipes de saúde estejam, ao mesmo tempo, estimuladas e sendo preparadas para assumir novos padrões de autonomia e de responsabilidade perante a família e seus membros (Campos, 1992 apud Rosa e Labate, 2009).
A diminuição da internação hospitalar e a alteração da mentalidade nos atendimentos pressupõe uma mudança cultural da população e dos profissionais da saúde que ainda vem sendo conquistada. É nesse contexto que a ESF está, tentando fazer valer as novas dinâmicas propostas, lá atrás, para os serviços de saúde.
Sendo assim, os desafios se encontram entorno da promoção de uma relação mais próxima entre os profissionais e as pessoas, famílias e comunidades, assumindo o compromisso de prestar assistência integral e resolutiva a toda população, a qual tem seu acesso garantido através de uma equipe multiprofissional e interdisciplinar que cuida de acordo com suas reais necessidades.
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Gostei muito dos artigos!
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Obrigado, Dailma! Um grande abraço!!
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Adorei obg
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Obrigada pelos artigos, são muito relevantes, especialmente, porque aborda assuntos que permeiam o cotidiano dos profissionais da saúde na atenção básica.
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Material muito bom!
Estratégias de cuidado, e a importância desta transformação ao longo do tempo.
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A estratégia da Família e um papel muito importante na atenção básica, porém seria essencial trabalhar junto com o CAPS dos municípios , e da ênfase não somente ao portador de deficiência mental mas exclusivamente a família do paciente.
A secretaria de saúde por meio dos profissionais da saúde envolvendo a população e demas órgãos do município para abraçarem essa causa que é esquecida.
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Material excelente! Parabéns
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mUITO DIDÁTICO O MATERIAL, MAS GOSTARIA DO ACESSO AS REFERÊNCIAS! GRATA