“Triste época! Mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito.”
Albert Einstein
Desvendando o estigma: aspectos históricos e conceituais
Diversos são os estudos em todo o mundo (Thara & Srinivasan, 2000; Link & Phelan, 2001; Villares & Sartorius, 2003; Parker, 2013) que evidenciam o estigma e o preconceito vivenciado e experenciado pelas pessoas em sofrimento psíquico e que, em algum momento de suas vidas, buscam atendimento e cuidado nos serviços de saúde mental.
O estigma e o preconceito acompanham há tempos as populações mais vulnerabilizadas pela sociedade, acarretando ainda mais sofrimento e efeitos deletérios e negativos em suas vidas.
Os gregos criaram o termo estigma, para se referir a sinais corporais com os quais procurava-se evidenciar algo de extraordinário ou mau sobre o estado moral de quem os apresentava. Atualmente, o termo é amplamente utilizado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, sendo mais aplicado à própria “desgraça” do que à sua evidência corporal.
Em 1963, em seu livro “Estigma: notas sobre manipulação da identidade deteriorada”, obra pioneira sobre o estigma, Goffman descrevia que a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias.
O mesmo autor refere que a estigmatização pode ser vista como uma forma de classificação social pela qual um grupo – ou indivíduo – identifica outro segundo certos atributos seletivamente reconhecidos pelo sujeito classificante como negativos ou desabonadores, associados a “experiências ou comportamentos não normais e não normativos” (Parker, 2013).
Quando o “estranho” está a nossa frente, podem surgir evidências de que ele possui um atributo que o torna diferente dos outros. Assim, deixamos de considerá-lo uma criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa “estragada e diminuída”.
Tal característica é um estigma, especialmente quando seu efeito de descrédito é muito grande (demérito, fraqueza, desvantagem) havendo então uma discrepância específica entre as identidades sociais virtual e real.
A ideia de estigmatização aproxima-se, de acordo com Velho (1989), da noção de “desvio social”.
A classificação de grupos desviantes pode também ser considerada como expressão particular de um processo de estigmatização, ou seja, temos de um lado os grupos rotulados ou estigmatizados como sendo parte de uma camada “desviante” e, por outro lado, os grupos admitidos como “normais”.
O conceito de desvio social, da mesma forma que o de estigma, implica numa situação relacional, já que qualquer daquelas categorias não pode ser pensada isoladamente, mas apenas dentro de um sistema de oposições sociais, ou seja, “desviantes” e “normais” emergem como tipos que se afirmam contrastivamente, constituindo-se por sua vez em uma manifestação de categorização social, onde se distinguem o desviante do normal.
Uchôa (1976) refere que “normal” é o que corresponde ao ideal subjetivo pessoal, influenciado por problemas socioculturais, de educação, de formação ético-espiritual. Já o “anormal” é tudo aquilo que estiver em contradição com tal idealização, existindo uma escala pessoal de valores, variável no tempo e no espaço.
O autor ainda aponta que nos conceitos de saúde e doença encontra-se bem difundido o juízo de valor, sendo comum o fato das pessoas “doentes” e seus familiares envergonharem-se da “doença”, principalmente quando se está em sofrimento psíquico e/ou frequentando algum serviço de saúde mental, muitas vezes ocultando-a, como se representasse algo de culposo e pecaminoso.
Foucault (1993) refere que é próprio de nossa cultura, dar à doença, o sentido do desvio e ao doente um status que o exclui.
O estado do “transtorno mental” é ainda definido como inadaptação, insuficiência, desinserção por parte do indivíduo total em que, implicitamente, estão integrados aos planos biológico, psíquico, social, cultural, espiritual, entre outros.
Link e Phelan (2001) estabelecem que o estigma ocorre quando alguns elementos estão presentes de forma simultânea, tais como: rotulação; estereotipagem; separação; perda de status e discriminação.
Para os autores, é a partir desta rotulação os estereótipos são construídos, Além disso, tais formas de rotulação, discriminação e estigma são decorrentes de uma relação de poder.
Tal relação de poder, de acordo com os autores, é que irá ampliar o estigma, levando a uma possível perda do status social demandado e sustentado por grupos autodeclarados como dominantes em nossa sociedade.
De perto ninguém é normal: o estigma da “loucura”
Somente para lembrarmos um pouco da história da “loucura” no Brasil e de como as pessoas com sofrimento psíquico (ou “transtornos mentais”) eram tratadas e vistas pela sociedade, o “louco” emerge como problema social no século XIX, de maneira semelhante à Europa, como um elemento de desajuste à ordem social vigente, em meio a um contexto de desordem, mendicância e ociosidade.
O crescimento deste grupo de indivíduos constituía uma ameaça para a paz social das cidades e da burguesia. Passam a ser levados, inicialmente, à reclusão em Santas Casas de Misericórdia, sendo jogados em porões, sem tratamento e entregues a guardas e carcereiros responsáveis pela sua tutela; os espancamentos e contenções em troncos eram as formas de controle usuais.
Mann (2017) descreve que no início do século XX, assistiu-se uma reação às definições correntes de doença mental. Essa revolução, caracterizada pelo desenvolvimento da chamada “Psiquiatria Dinâmica”, contribuiu para a emergência de uma nova consciência coletiva, contraposta as ideias majoritárias.
Tal perspectiva visa o processo de desinstitucionalização e, consequentemente, o de humanização com os serviços de saúde mental criados para modificar o modelo asilar, hospitalocêntrico e manicomial, buscando-se, assim, um cuidar e assistir mais dignos e sem os preconceitos e a estigmatização dos indivíduos em sofrimento psíquico.
Como aponta Jorge (2013), estudos realizados desde a década de 1950 apontam que “a noção de que as pessoas com doenças mentais são vistas com medo, desconfiança e até mesmo aversão, e consideradas como perigosas, sujas, imprevisíveis e sem valor” (p.10)
Estes sentimentos e atitudes diante do indivíduo em sofrimento psíquico (ou da pessoa rotulada como “louca” ou com transtorno mental), agravam ainda mais a situação de não pertencimento, de segregação, de exclusão.
Muitas podem ser as consequências do estigma e do preconceito em relação à essa população. Parker (2013) destaca que de uns anos para cá, o enfoque no estigma e também no preconceito tem contribuído para “o crescimento de um importante trabalho sobre as consequências na saúde e da discriminação sofrida, como resultados desses dois processos” (p. 27)
Impactos do estigma na saúde mental dos indivíduos
Importante destacar o que Parker & Aggleton (2003) descrevem sobre como devemos compreender as questões relacionadas aos estigmas e seus impactos tomando como exemplo as pessoas que vivem e convivem com HIV/Aids ou com qualquer outro tipo de questão tratada como “desviante” pela sociedade. Para os autores:
“O estigma deve ser compreendido mais claramente como ligado ao funcionamento das ‘desigualdades sociais’; isso significa dizer que as questões de estigmatização e discriminação, quer em relação ao HIV e à Aids ou a qualquer outra questão, exigem que reflitamos mais amplamente sobre a forma como alguns indivíduos e grupos passam a ser socialmente excluídos, e sobre as forças que criam e reforçam a exclusão em diferentes contextos” (p.29)
As desigualdades sociais são apenas um dos exemplos do ciclo vicioso que permeia o estigma e a saúde mental. Por exemplo, uma pessoa que está em sofrimento psíquico e precisa ser cuidada e atendida em algum dispositivo da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), mas reluta em buscar ajuda, nesse momento, devido ao receio de sua vizinhança saber de sua “condição” e, assim, ser vítima de preconceito, só agrava ainda mais seu sofrimento. Por isso, o indivíduo acaba sendo colocado na armadilha do ciclo vicioso do estigma.
O ainda existente estigma da “loucura” muitas vezes impede o exercício da cidadania do indivíduo.
Questões sociais e econômicas são afetadas pela estigmatização do sujeito, fazendo com que haja dificuldade de inserção no mercado de trabalho, de escassez de oportunidades e, consequentemente, a exclusão social, o afastamento do convívio em seu território e na sociedade.
No livro de recursos sobre saúde mental, direitos humanos e legislação, da OMS (2002) intitulado “Cuidar sim, excluir não”, há uma perfeita descrição de algumas das possíveis consequências dos estigmas sofridos pelas pessoas com “transtornos mentais”:
“Tanto em países de baixa como de alta renda, a estigmatização de pessoas com transtornos mentais tem persistido ao longo da história, manifestada por estereotipia, medo, assédio, raiva e rejeição ou evitação. Violações de direitos humanos e liberdades básicas e negação de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais aos que sofrem de transtornos mentais são uma ocorrência comum em todo o mundo, tanto dentro de instituições como na comunidade. O abuso físico, sexual e psicológico é uma experiência cotidiana para muitos com transtornos mentais. Além disso, eles enfrentam uma recusa injusta de oportunidades de emprego e discriminação no acesso aos serviços, seguro-saúde e políticas habitacionais. Grande parte disso continua sem registro e, com isso, esse ônus permanece sem quantificação.” (p. 7)
Direitos Humanos e Justiça Social contra estigmas e preconceitos
A Reforma Psiquiátrica trouxe importantes avanços no campo da Saúde Mental, como o processo de desinstitucionalização, caracterizado pela redução de leitos em hospitais psiquiátricos e implantação de serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico.
Um dos marcos dessa mudança foi a Lei n° 10.216 de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
Outro marco foi a regulamentação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) através da Portaria n° 3.088 de 2011 que reforçou ainda mais a mudança de paradigmas no cuidado à saúde mental do indivíduo em sofrimento psíquico, trazendo as seguintes diretrizes:
I – Respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liberdade das pessoas;
II – Promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde;
III – Combate a estigmas e preconceitos;
IV – Garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar;
V – Atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas;
VI – Diversificação das estratégias de cuidado;
VII – Desenvolvimento de atividades no território, que favoreçam a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania;
VIII – Desenvolvimento de estratégias de Redução de Danos;
IX – Ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares;
X – Organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionalizada, com estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado;
XI – Promoção de estratégias de educação permanente; e
XII – Desenvolvimento da lógica do cuidado para pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, tendo como eixo central a construção do projeto terapêutico singular. (Brasil, 2011, p. 3)
Dentre as doze diretrizes aqui apresentadas pela Portaria 3.088, destaco algumas palavras-chave que nos ajudam a refletir sobre as diversas formas de combatermos o estigma e o preconceito sofrido pelas pessoas em sofrimento psíquico.
O respeito aos direitos humanos é fundamental para que, além do combate aos estigmas vivenciados por esses indivíduos, possamos oferecer um cuidado baseado em equidade, sempre reconhecendo a influência das determinantes sociais da saúde para promoção de uma atenção humanizada, centrada nas necessidades da pessoa e desconstruindo as barreiras das desigualdades.
Com o advento da Reforma Psiquiátrica Brasileira e a desmontagem do modelo manicomial e hospitalocêntrico, Amarante e Torre (2017) destacam que a luta antimanicomial “produziu novos tempos nas formas de tratar a loucura e o imaginário social”.
Nesse sentido, tais autores ainda apontam as diversas inovações nas formas de cuidado em saúde mental, marcantes no cenário brasileiro, dentre elas:
1) no campo do trabalho, as experiências de Economia Solidária e de cooperativismo;
2) no campo da cultura, projetos de arte e cultura e a produção sociocultural, destacando-se os Pontos de Cultura, blocos de Carnaval, grupos musicais e companhias de Teatro;
3) as lutas a partir do protagonismo das/dos usuárias/os, seus familiares e do movimento da Luta Antimanicomial, em defesa dos direitos das pessoas em sofrimento mental;
4) as frentes de articulação no âmbito jurídico, através do trabalho com profissionais do direito e da justiça, como defensoria pública, ministério público e outras instituições (p. 109).
Todas essas mudanças ocorridas ao longo de décadas de lutas e resistências do movimento antimanicomial são importantes para apontar os direitos humanos e a justiça social como alicerce fundamental para a mudança no olhar da “loucura” e a necessidade, como descrevem Amarante e Torre (2017), de “adotarmos uma nova forma de conceituar a experiência de sofrimento mental, não como inferioridade e incapacidade, erro ou desvio, mas como diversidade psíquica, ou extranormalidade, em um sentido de crítica às noções de ‘transtorno’ e anormalidade”. (p. 113).
Termino citando a grande psiquiatra brasileira, Nise da Silveira, expoente e exemplo de profissional da saúde mental com seu olhar sensível e humanizado, de respeito às diversidades e defesa dos direitos humanos:
“O que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com a outra. O que cura é a alegria. O que cura é a falta de preconceito”
Referências Bibliográficas:
. AMARANTE P & TORRE EHG. Direitos humanos, cultura e loucura no Brasil; um novo lugar social para a diferença e a diversidade In: Direitos Humanos & Saúde Mental. OLIVEIRA, W; PITTA, A; AMARANTE, P (Organizadores). 1ª ed., São Paulo: Editora Hucitec, 2017.
. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria/GM n° 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. Brasília, 2011.
. FOUCAULT, M. História da Loucura, 3ª ed., São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.
. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a identidade deteriorada, 1ª ed., Buenos Aires: Amorratu, 1963. p. 11-56.
. JORGE MR. Concepções populares e estigma relacionados às doenças mentais. Nova Perspectiva Sistêmica; agosto 2013; nE 46, p. 8-19.
. LINK, BG & PHELAN, JC. Conceptualizing Stigma. Annual Review of Sociology, 2001; 27, 363-385.
. MANN CG & MONTEIRO S. Sexualidade e prevenção das IST/Aids no cuidado em saúde mental: o olhar e a prática de profissionais no Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública; 2018; 34(7).
. OLIVEIRA, W; PITTA, A; AMARANTE, P (Organizadores). Direitos Humanos & Saúde Mental. 1ª ed., São Paulo: Editora Hucitec, 2017.
. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Cuidar sim, excluir não: livro de recursos sobre saúde mental, direitos humanos e legislação. Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias, Organização Mundial de Saúde, 2002.
. PARKER, R. Intersecções entre estigma, preconceito e Discriminação. In: Monteiro, S. e Vilella, W. (organizadores). Estigma & Saúde. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.p. 25-46.
. PARKER, R & AGGLETON, P. HIV and Aids´related stigma and discrimination: a conceptual framework and implications for action. Social & Medicine, 57 (1): 13-24, 2003.
. THARA, R & SRINIVASAN, TN. How stigmatising is schizophrenia in India? Int J Soc Psychiatry. 2000 Summer;46(2):135-41.
. UCHÔA, DM. Psicologia Médica, 1ª ed., São Paulo: Editora Sarvier, 1976.
. VELHO, G. Desvio e Divergência: uma crítica da Patologia Social, 6ª ed., Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1989.
. VILLARES CC & SARTORIUS N. Challenging the stigma of schizophrenia. Braz J Psychiatry. 2003 Mar; 25(1):1-2.