Franco Basaglia, a figura-símbolo da Reforma Psiquiátrica no Brasil

A história do movimento internacional de reforma psiquiátrica está diretamente vinculada a história de Franco Basaglia e de milhares de pessoas que dedicariam suas vidas em fazer dos sistemas de saúde mental mundiais locais de respeito à vida, à pessoa e aos direitos daqueles em estado de dificuldade psicológica.

Basaglia é uma das grandes referências desse movimento global e quem teria liderado o movimento italiano de reforma contra os desumanos hospitais psiquiátricos, assumindo um posto de inspiração, tanto por sua pessoa quanto pelos conteúdos que difundiu para outros lugares do mundo.

Sua história na saúde mental é longa. Formou-se psiquiatra, mas junto de outros colegas, enfrentou o sistema vigente de sua época, refutou os conhecimentos e ideias com as quais teve contato e transformou o olhar, começando pela Itália, ao paciente necessitando de apoio psicológico.

Conversemos um pouco mais sobre essa grande figura e referência que é Franco Basaglia.

Franco Basaglia e a Psiquiatria Democrática Italiana

Médico e psiquiatra italiano, nascido em Veneza no ano de 1924, vindo a falecer em 1980, Franco Basaglia, após a 2ª Guerra Mundial, depois de 12 anos de carreira acadêmica na Faculdade de Medicina de Padova, tornou-se o líder reconhecido do importantíssimo movimento pela reforma psiquiátrica na Itália.

Sob o nome de  Psiquiatria Democrática, Basaglia e seus companheiros teriam iniciado a implementação de ideias e ideais que compunham esse desejo de transformação da assistência psiquiátrica italiana através de duas famosas experiências nos hospitais psiquiátricos de Gorizia e Trieste.

Em 1961, primeiramente na cidade de Gorizia, o grupo liderado por Basaglia faria do ambiente hospitalar psiquiátrico um local de críticas e construção de ideias contrárias ao conhecimento tradicional que claramente deixava as pessoas em necessidade à margem nos tratamentos. Mudanças institucionais e relacionais passariam a ser feitas.

O trabalho proposto e realizado em Gorizia basear-se-ia em três princípios de intervenção presentes nas críticas de Franco Basaglia ao modelo vigente e, também, recorrentemente, nas assembleias entre profissionais, nas discussões entre os técnicos, no contato com os familiares e na relação construída com a sociedade.

A saber, seriam: a origem do pertencimento de classe – classe dos loucos, leia-se a criação do estigma – dos internos do hospital; a pretensão de neutralidade e de produção de verdade das ciências – leia-se psiquiatria; e a função social de tutela e controle social da psiquiatria, do manicômio e do técnico na constituição de uma hegemonia (Amarante, 1996 apud Oliveira, 2011).

Não significando uma recusa a ideia de que as pessoas estariam passando por dificuldades psicossociais, se faz, pela primeira vez, uma inversão do que era proposto pela psiquiatria tradicional por meio dessa experiência, abdicando do transtorno enquanto foco de todos os tratamentos e pesquisas, ao inferir criticamente sobre esse tipo de saber como único e absoluto.

Nesse momento, finalmente, surge a necessidade e a obrigatoriedade de se colocar a pessoa e sua vida no centro dos debates, das pesquisas e dos tratamentos, e não mais a doença, que estigmatizava e prejudicava a recuperação de cada um em estado de angustia psicológica.

Apesar do hospital psiquiátrico de Gorizia ter se transformado em um símbolo do processo de desinstitucionalização, Basaglia e sua equipe teriam percebido que seria necessário bem mais do que se tinha conseguido; que era preciso fechar o hospital e devolver a liberdade aos pacientes, inserindo-os novamente à sociedade, algo não conquistado naquele momento.

A concretização desse ideal teria início em 1970, no hospital psiquiátrico da cidade de Trieste, localizada no norte da Itália, quando Franco Basaglia e sua turma retomam o  projeto de desinstitucionalização, que abria espaço para que pudessem surgir invenções de novas estruturas assistenciais e terapêuticas em saúde mental que substituíam o hospital psiquiátrico (Oliveira, 2011).

“É esse o propósito do processo de desinstitucionalização levado a cabo em Trieste. Os internos vão recebendo alta do hospital psiquiátrico e, quando não têm estrutura familiar de apoio, tornam-se ou “hóspedes” – no sentido de que passam a habitar em espaços do ex-hospital, não mais como internos –, ou passam a habitar em casas no meio da cidade” (Amarante, 1996 apud Oliveira, 2011).

A medida em que se desativava o hospital e seus pacientes eram libertados, eram criados centros de apoio e de saúde territoriais como forma de manter cuidados para com a própria pessoa, sua família e a comunidade como um todo. Surgem cooperativas de trabalho para os ex-pacientes e formas de inseri-los na sociedade novamente.

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Foi um processo de tempo, que contaria com a participação dos ex-pacientes, de seus familiares, dos próprios profissionais, de estudantes, artistas e da comunidade. Seu desfecho, mais que positivo, já no ano de 1977, seria o fechamento definitivo do manicômio de Trieste.

O pensamento de Franco Basaglia e suas contribuições ao ideário mundial

A experiência da reforma psiquiátrica italiana serviu e ainda serve de referência para todas as lutas ao redor do mundo em favor de serviços e tratamentos psicossociais inclusivos, que respeitem a vida, a singularidade das pessoas e seus direitos, buscando desconstruir um modelo arcaico e estigmatizante.

Basaglia teve a coragem de questionar as verdades científicas de seu tempo. Ele tinha como ideal devolver a liberdade dos internos, pois sabia que somente em contato com a sociedade e com outras pessoas, especialmente com as que objetivavam ajuda-las de maneira atenciosa e bem estruturada, suas condições seriam superadas.

Assim, Franco Basaglia sugeria que as questões ligadas à loucura deveriam ser tratadas no meio social, ou seja, que essas questões também possuíam um caráter político, pois não eram somente de responsabilidade dos profissionais de saúde mental, mas sim, de toda a sociedade (Oliveira, 2011).

Nesse sentido, Basaglia denunciava o que classificou como “duplo da doença mental”, demonstrando que tudo o que se sobrepunha à “doença” propriamente dita, existiria como resultado do processo de institucionalização a que eram submetidos os “loucos” no hospital, ou nos manicômios.

Os manicômios seriam enxergados por ele e seus companheiros como lugares de fomento às desigualdades, à opressão e às intolerâncias, e sua extinção enquanto lugar físico seria apenas uma etapa de uma luta ideológica muito maior, algo construído e enraizado em muitas sociedades.

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Basaglia trouxe com suas ideias essa noção de que outras formas de aprisionamento e silenciamento do sujeito existiriam. A exaltação do DSM, a indústria farmacêutica e o uso exacerbado de medicamentos; diagnósticos estranhos e a falta de diálogo; a psicopatologização de problemas sociais; tudo estaria vinculado.

Suas experiências de luta deram tom aos movimentos de reforma da saúde mental espalhados pelo mundo. Questionar estigmas, refletir a respeito de nossas posições enquanto cidadãos e profissionais da área, a respeito da produção de conhecimentos e de para quem essa estaria servindo; podemos atribuir grande parte disso a Franco Basaglia.

Considera-se a partir dessas reflexões trabalhadas por Basaglia, a importância de sermos profissionais comprometidos em manter um posicionamento crítico e reflexivo em relação ao constante processo transformações que precisa ser construído em nossas práticas da saúde mental cotidianamente. Esse é o legado de Franco Basaglia.

A Lei Basaglia: Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana

Como consequência das ações e dos debates iniciados por Franco Basaglia, no ano de 1978 foi aprovada na Itália a chamada “Lei 180”, ou “Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana”, também conhecida popularmente como “Lei Basaglia”.

A Lei Basaglia é a expressão dos anos de luta consolidados por Basaglia e seus companheiros contra os abusos realizados dentro e fora de hospitais psiquiátricos da Itália em relação a seus pacientes.

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A ideia era, além de garantir direitos ao povo italiano, fazer da lei um marco contra os ideais contrários aos que a reforma representava – algo em que ela realmente se tornaria.

Os psiquiatras italianos que participaram desta batalha aliaram-se de múltiplas maneiras com partidos e movimentos sociais, recorreram amplamente à imprensa escrita e televisiva, e aos mecanismos acadêmicos de divulgação de ideias, com o fim de promover encontros entre sociedade e Estado, resultando em decisões legislativas e na possibilidade de oferta de direitos civis e sociais (Goulart, 2008).

Ao representar a instituição de novos valores e princípios à sociedade italiana, a Lei 180 tornou-se um divisor de águas ao tratar de dois aspectos importantes que compunham o modelo de tratamentos psiquiátricos anterior, expondo os tratamentos compulsórios e a forma como se dava o uso dos hospitais psiquiátricos, até mesmo como espaços de tortura.

Com sua promulgação, os tratamentos compulsórios são extintos na Itália, ao passo em que se constitui a obrigatoriedade de tratamentos psicológicos aos necessitados, tendo como ponto principal o livre arbítrio e os interesses pessoais dos atendidos, anteriormente negligenciados.

O processo deveria ser desencadeado por uma autoridade médica, mas qualquer pessoa, a qualquer momento, poderia pedir a revisão do tratamento, e o paciente teria garantido o direito de livre comunicação ao longo do tratamento.

Em linhas gerais, o tratamento psiquiátrico passa a ser, fundamentalmente, uma prática que deveria contar com o consentimento do sujeito, e a lei, um elemento a assegurar a terapêutica de atuação em serviços extra hospitalares, com a possibilidade de livre escolha dos terapeutas e do lugar de atendimento.

Quanto ao uso dos hospitais psiquiátricos públicos, ficaria garantida a proibição da construção de novos hospitais dessa natureza, a utilização dos então existentes e o dever de desligamento e desconstrução dos mesmos, dado o mau uso desses espaços e os traumas causados às pessoas e à sociedade italiana como um todo.

A possibilidade de criação de unidades psiquiátricas especializadas em hospitais gerais, bem como a instituição de divisões neuropsiquiátricas como acontecia antes, também deixariam de existir.

A Lei Basaglia, que influenciaria grandiosamente os processos constitucionais de implementação da lei brasileira da reforma psiquiátrica, marca um período na história italiana e um grande passo em direção ao que almejava Basaglia e seus companheiros; uma sociedade mais justa, humana, inclusiva e de direitos bem estabelecidos.

A passagem de Franco Basaglia pelo Brasil

Em 1978 e 1979, após o fechamento do hospital psiquiátrico de Trieste e, coincidentemente, pouco tempo depois da promulgação da Lei Basaglia na Itália, coroando sua luta contra o descaso e o modelo arcaico de tratamentos originário da psiquiatria, Franco Basaglia vem ao Brasil.

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Indo a simpósios, conhecendo nosso antigo sistema manicomial, Basaglia, em pouco tempo, pôde fomentar de diversas formas o movimento pela reforma psiquiátrica brasileira, ao nos servir de referência, expondo suas experiências de luta na saúde mental, como demonstra a história da reforma italiana.

Inspirando pessoas por onde passou, Franco Basaglia conheceu o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Seus discursos, baseados em sua vida e conhecimentos, guiaram militantes da luta no Brasil por melhores condições na saúde mental e direitos ao povo; uma importação de materiais e reflexões extremamente ricas.

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Sua visita ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena foi marcada pelo imenso impacto causado a ele próprio em decorrência das precárias e desumanas condições em que se encontravam os internos do manicômio. Basaglia ficou tão horrorizado com a realidade daquele manicômio que o comparou a um “campo de concentração nazista” (Sociedade Mineira de Psicologia, 1982 apud Oliveira, 2011).

A partir dessa influência, a Reforma Psiquiátrica brasileira seguiu o seu caminho conduzido pelo lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Assim, a reabilitação psicossocial brasileira e os serviços substitutivos surgem como uma forma de substituir o antigo modelo manicomial (Nicácio, 1990; Pitta, 2001; Amarante, 2008 apud Oliveira, 2011).

A união entre Brasil e Itália, em termos ideológicos referentes a saúde mental, nunca foi tão forte, e a presença de Basaglia em nosso país serviu para acentuar semelhanças em uma luta sem fronteiras e que abarca, mesmo hoje, o mundo tudo.

A mensagem de Franco Basaglia – Uma reflexão final

Franco Basaglia nos deixa uma mensagem muito forte para sempre realizarmos o exercício de refletirmos sobre nossas práticas, sobre nossos saberes e sobre o que realizamos hoje (Oliveira, 2011).

Sua mensagem faz jus ao que representam seus conhecimentos para a saúde mental como um todo. Uma constatação sobre o desafio cotidiano do trabalho em saúde mental, sobre o engrandecimento que ele proporciona se bem aproveitado e a clareza com a qual expõe os desafios da caminhada em direção a um mundo mais justo e bonito.

Cabe a nós, tamanha a inspiração que suas contribuições suscitam, manter os ideais pelos quais Basaglia batalhou, reinventando e superando, a cada dia, nossa forma de pensar e agir em saúde mental, tornando-a mais inclusiva, sensível e de fácil acesso a todos.

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Para que haja, cada vez mais, a (re) inserção de pessoas portadoras de sofrimento mental em nossa sociedade, com a devolução de sua liberdade, dignidade, autonomia e plena cidadania, devemos sustentar viva a memória de quem foi e do que representa, Franco Basaglia.

5 Comentários


  1. Obrigada pela publicação, estou conhecendo um pouco mais sobre essa grande pessoa que nos deixou um grande legado.

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  2. Exelente conteúdo! Material de suma relevância. Adorei, conhecer um pouco mais dessa grande figura, símbolo da Reforma psiquiátrica. Obrigada!

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  3. A Reforma Psiquiatra Brasileira, que Franco Basaglia ensejou (e eu o conheci pessoalmente quando veio aqui em BH), fechou muitos e muitos leitos psiquiátricos, abrindo o caminho para os potentes e atuais CAPS – Centros de Atenção Psicossocial (aqui em BH chamados CERSAM’s – Centros de Referencia em Saúde Mental / CERSAM-s AD – Centros de Referência em Saúde Mental para Álcool e outras Drogas), além de dezenas de equipes de saúde mental -ESP na Atenção Primária do SUS-BH nos Centros de Saúde, juntamente com as equipes de saúde da família- ESF. Muita luta e trabalho envolvidos.👏👏👏✊✊✊❤❤❤

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  4. Obrigada por sua matéria , estou estudando sobre a reforma psiquiátrica no Brasil e esse artigo me ajudou muito.

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