A vida e saúde mental das Pessoas em Situação de Rua

A desigualdade social é um dos problemas que permeia, quase inteiramente e de forma muito parecida, a maioria das sociedades ao redor do mundo.

Observamos como um reflexo dessa circunstância a exclusão de grande parte das pessoas que, infelizmente, se encontram dentro daqueles grupos mais afetados por ela.

Um desses grupos, se não o mais afetado por tudo aquilo de negativo que a desigualdade tem a oferecer, diz respeito as pessoas em situação de rua. Estigmatizados, essa parcela da sociedade sofre em decorrência do descaso e da falta de acesso a seus direitos.

Foto: Thiago Fogolin

Como consequência dessa realidade, a saúde mental dessas pessoas também sai prejudicada. Não se encontram os auxílios necessários para que vivam, minimamente, bem, ou mesmo para que saiam dessa triste situação.

Pensemos um pouco sobre a situação e a saúde mental das pessoas em situação de rua.

Exclusão e desigualdade social no Brasil – Um pequeno panorama

Historicamente falando, algumas das características negativas do crescimento econômico brasileiro estruturaram-se sob a forma de elementos como a concentração de renda, o monopólio irrestrito de terras nas regiões rurais e o mal planejamento organizacional dos grandes centros urbanos.

Com o processo de globalização, as disparidades oriundas desse crescimento tornaram-se cada vez mais visíveis, dado que o acesso aos benefícios da “modernidade” socioeconômica se solidificaria como sendo algo bastante restrito, normalmente de acesso a apenas poucas camadas da população em geral.

Dentro desse cenário, de êxodo rural, crescimento urbano desorganizado e abarrotamento de pessoas dentro das cidades, é que se encontra a exclusão, a desigualdade e, em decorrência desses elementos, a realidade vivida pelas pessoas em situação de rua.

A literatura sobre o tema da exclusão social leva em conta alguns aspectos para defini-la e entende-la, mas em unanimidade, seus pesquisadores e estudiosos a tem como um processo, dado que a exclusão em si não aconteceria de um dia para o outro.

Dessa maneira, para pensa-la, considerar tanto o contexto social e político, quanto o cultural e o humano, se fariam tarefas fundamentais.

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O social, no que diz respeito à fragilidade ou até ausência de vínculos sociais e interpessoais que constituem a pessoa. O político, na medida em que significaria a ausência de participação por parte dessas pessoas nas decisões políticas e no exercício dos direitos garantidos constitucionalmente.

Com relação ao aspecto cultural, entender a estigmatização e a categorização do ser humano. E por último, no contexto humano, entender o desrespeito ao indivíduo, que muitas vezes não possui condições de satisfazer suas necessidades mais básicas (Filho, 2006, apud Escorel, 1996).

Nesse sentido, os chamados excluídos permaneceriam destituídos de acesso a determinados bens, serviços, direitos fundamentais e garantias que o próprio Estado teria a obrigação de dar em decorrência das leis e da Constituição.

Para entender todo esse processo do qual falamos, basta pensar um pouco na forma desordenada como se deu o crescimento dos grandes centros urbanos do Brasil. Não tendo a estrutura suficiente para lidar com a migração interna para essas áreas, acentuou-se:

“…a proliferação de favelas, o desemprego, o subemprego, a poluição do ar, das águas, do som, a violência urbana, enchentes, a segregação social, as irregularidades na ocupação do solo urbano, a ineficiência e/ou insuficiência no atendimento de saúde e educação, a falta de habitação adequada, pessoas vivendo às margens de rios e canais, ou mesmo a completa falta de moradia.” (Filho, 2006)

São nas grandes cidades os lugares em que a miséria e a desorganização social são bem mais visíveis. É nela em que as pessoas em situação de rua sofrem e buscam sobreviver sem o devido auxílio.

A vulnerabilidade psicossocial de quem vive nas ruas

Frequentemente permeados pelo descaso e pela pobreza em suas vidas, se encontram as pessoas em situação de rua, que como se pode imaginar, passam a viver nela não por opção, mas sim por falta dela.

Assim como ocorre com a exclusão social, morar na rua não acontece do dia pra noite. Um processo de fatores distintos contribui pra que se culmine nessa situação, dado que cada morador tem sua história, seu modo de ser e seus problemas, mesmo antes da rua.

A fragilidade das relações familiares, o uso abusivo de substâncias, o desemprego, a miséria, a ausência de vínculos sociais e comunitários significativos, a dificuldade no acesso a direitos fundamentais, são exemplos comuns disso.

A junção desses elementos tem um grande impacto na vulnerabilidade psicológica dessas pessoas; a falta de apoio inerente a vida delas tende a ser um fator de agravamento dessas circunstâncias; o sentimento de não pertencimento leva o próprio ser a se excluir; e as consequências dessa realidade não ajudam a superar a condição.

Quanto maior a falta de recursos, maior também a insegurança psicológica e, em decorrência disso, a probabilidade e o risco de se desenvolverem transtornos mentais como a depressão ou transtornos graves de ansiedade, por exemplo. A situação de quem está nas ruas é extremamente delicada, até mesmo para os profissionais dispostos a ajudar lidarem.

Vive-se sob o estigma e o isolamento social, sem perspectiva de um futuro melhor. Na rua, estão sempre submetidos a toda espécie de abandono e deterioração pessoal, como a violência, o frio, a fome, o cansaço, a ausência de esperança, o constante risco de contração de doenças, a solidão, a insegurança, entre tantos outros (Filho, 2006).

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Nesse contexto, muitos recorrem as alternativas de “solução” mais fáceis, mais próximas, como o álcool ou as drogas, que apesar de suscitarem algum alívio temporário dentro do que sentem e pensam os moradores, a longo prazo, podem ter impactos intensamente negativos na saúde mental dos seus usuários.

A situação psicológica se agrava conforme não se encontram serviços, suporte ou algo que nutra a esperança de sair da rua. Daí surge a importância das políticas e dos serviços públicos de apoio a essa parcela da população tantas vezes esquecida pelo Estado e pela própria sociedade.

Os serviços de apoio disponíveis ao cuidado da saúde mental das pessoas em situação de rua

Um dos serviços mais utilizados na prevenção e tratamento de transtornos psicológicos e de outros problemas mais comuns exibidos por pessoas em situação de rua são os Consultórios na Rua.

Componente da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), os Consultórios na Rua são compostos por equipes de profissionais que atuam nos ambientes urbanos com o fim último de ajudar as pessoas em situação de rua, oferecendo a eles cuidados necessários em saúde mental em consonância com outros serviços, responsáveis por outros tipos de cuidados.

Atualmente, existem 144 equipes em atividade no Brasil. Tais equipes estão vinculadas à Política Nacional de Atenção Básica e sua proposição se deu principalmente a partir de experiências da Atenção Básica voltadas à população em situação de rua nas cidades de Belo Horizonte, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro (Van Wijk e Mângia, 2018).

Responsáveis pela oferta de cuidados psicossociais nos locais em que as pessoas em situação de rua se encontram, os profissionais das equipes estão incumbidos de prestar atendimento básico em saúde mental a todos e, em especial, aos que apresentam transtornos mentais e/ou fazem uso de crack, álcool e outras drogas.

Vale ressaltar que um dos motivos pelos quais foram criados os Consultórios na Rua diz respeito as repreensões, descaso, encaminhamentos indiscriminados e/ou ações de recolhimentos por parte de serviços vinculados ao Estado sofridos por essas pessoas, que então se apresentariam inseguras em buscar novamente outros serviços de saúde.

Atualmente, o senado brasileiro aprovou em forma de lei o auxilio obrigatório de qualquer serviço do Estado as pessoas em situação de rua, cabendo punições aqueles que se recusarem a tratar ou prestar ajuda aos cidadãos que buscarem esse e também outros tipos de atendimento.

Enquadram-se na medida os CAPS, as enfermarias, os serviços do SUS e seus diferentes derivados.

Dentro das equipes na rua, por exemplo, faz se obrigatória a análise das situações de vulnerabilidade, de forma a preparar os profissionais para atuar em consonância com as necessidades de saúde observadas, sempre com o objetivo de conseguirem dar suporte ao sofrimento dos usuários, mesclando saberes da Atenção Básica e da Saúde Mental nas ações ofertadas (Van Wijk e Mângia, 2018, apud Lisboa, 2013).

Por outro lado, como ressalta Lisboa (2013), é preciso abrir caminhos para que seja possível efetivar ações ainda mais complexas. Mesmo com os avanços conquistados com as ações que compreendem os trabalhos dos Consultórios na Rua, ainda não há a ampliação de acesso aos serviços para todos aqueles que necessitam deles.

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É de suma importância que o trabalho construído se dê como um cuidado emancipador, que tenha como enfoque a promoção dos direitos dos moradores a partir do bom relacionamento com os profissionais da saúde, com o objetivo de dar visibilidade às pessoas ao invés de focar somente em melhoras clínicas.

A autonomia, assim como a crença em si próprio, é um elemento fundamental para que as pessoas nesse contexto possam retomar uma vida positiva. Trabalhar essa parte é também cuidar da saúde mental daqueles vivendo nas ruas.

A escuta qualificada, o olhar humanizado e o respeito às escolhas de cada um devem-se fazer presentes e essenciais em todo e qualquer tipo tratamento, não importa a condição de quem está lá para ser tratado

Reflexões gerais acerca do tema “a saúde mental das pessoas em situação de rua”

A Secretaria Nacional de Assistência Social define as pessoas em situação de rua como sendo:

“…um grupo populacional heterogêneo que tem em comum a pobreza, vínculos familiares quebrados ou interrompidos, vivência de um processo de desfiliação social pela ausência de trabalho assalariado e das proteções derivadas ou dependentes dessa forma de trabalho, sem moradia convencional regular e tendo a rua como o espaço de moradia e sustento” (SNAS, 2008).

Tratando especificamente da saúde mental dos moradores, Botti (2010) afirma que, em geral, os problemas mentais maiores antecedem à condição de morar na rua, de forma que a condição precária de existência nesses contextos poderia exacerbar sintomas anteriores, podendo favorecer o aparecimento de outros transtornos e até mesmo de tentativas de suicídio.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), diversos fatores poderiam provocar transtornos mentais, estando entre eles: a pobreza, o sexo, a idade, os conflitos e desastres, a maioria das doenças físicas e o ambiente familiar e social conturbado.

Todos esses elementos, de uma maneira ou de outra, fazem ou fizeram parte da realidade das pessoas em situação de rua, em especial a pobreza, que é inerente a situação de quem tem a rua como “casa”.

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Apesar do reconhecimento dessas situações simplesmente não ser capaz de resolver os problemas criados pela desigualdade social, esse é um primeiro passo importante em direção a resolução de algumas das dificuldades enfrentadas pelas pessoas em situação de rua.

Esforços são feitos atualmente para que se altere para melhor a realidade dos moradores, mesmo que as instituições estatais nem sempre contribuam com investimentos e construção de infraestrutura para que, por exemplo, os serviços de atendimento melhorem ou mesmo para que aconteçam.

Foto: Thiago Fogolin

Se, por um lado, a vulnerabilidade social e econômica pode deixar os indivíduos mais expostos a estados de mal-estar expressos pela depressão, por exemplo, por outro, o aumento da densidade das redes de apoio social diminui o risco de sofrimento mental (Botti, 2010).

Vivemos em uma sociedade que julga e categoriza pessoas, situações, comportamentos, sem ao menos tentar reconhecer o que se passa do outro lado. As pessoas em situação de rua são também vítimas disso.

Medidas conjuntas, quebra de estigmas, compaixão, políticas públicas, preparo profissional; sem esses elementos o ciclo do qual fazem parte os moradores não vai se acabar.

Mudar a mentalidade de uma nação inteira não é simples, exigir mudanças estruturais dos governos também não, mas caso não tivessem havido lutas em prol dessas coisas em um passado não tão distante, não estaríamos onde estamos hoje.

Que façamos um pouco cada, que desconstruamos partes por dia da desigualdade e dos preconceitos que carregamos, as vezes mesmo sem saber. A saúde mental daquele que vive na rua e de tantas outras pessoas que precisam de ajuda depende um pouco disso também.


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8 Comentários


  1. Parabéns pela iniciativa de escrever sobre a temática. Texto muito bom! Estou como Assistente Social Residente em Saúde Mental (CE) e participo de um Projeto com PSR de uma praça muito conhecida em Fortaleza e estou escrevendo exatamente sobre tema.

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    1. Oi Emilie! Tudo bem com você? E parabéns você! pelo projeto..

      Te agradeço muito pelo elogio viu. Te convido a participar de alguns dos nossos fóruns, de repente apresentar seu trabalho.

      Se você tiver interesse, entra em contato com a gente, ta bom? Um grande abraço!

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  2. Olá! Seu texto está resumidamente falando o cerne desse público. Está me ajudando muito na construção do meu projeto de pesquisa. Você possui esse artigo com as referências citadas? Desde já grata pelo texto e possível apoio 🙂

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    1. Boa tarde, Andressa! Tudo bem com você?

      E que legal! Fico muito feliz mesmo em poder estar te ajudando de alguma forma. Quanto as referências, se você colocar os nomes e as datas que coloquei no artigo, com certeza você achará todas no google. Mas caso você tenha dificuldades, Andressa, nos mande um email: pietronavarro96@hotmail.com. Assim vejo se consigo encontrar os pdf´s pra te mandar, beleza? Será um prazer contribuir um pouquinho mais com a sua pesquisa. Um grande abraço!

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  3. Excelente seu texto fui morador de rua e realmente a insegurança , o cansaço, o medo nos afrontam todo dia acordar e nao saber se vai comer é bem estressante gracas a Deus sai da rua estou bem , trabalho e tenho uma companheira que me ajuda e sabe da minha história , proximo passo fazer psicologia e ao ler seu artigo essa certeza so aumenta !!

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  4. Então pelo termo mais claro e dolorido que for estas pessoas em situação de rua com problemas mentais,infelizmente a prefeitura e/ou estado não tem nenhum local a destina-las a um tratamento ou um abrigo para as mesmas e ficam perambulando pelas ruas sofrendo…….

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  5. Oi Pablo! Qual a data de publicação desse artigo? Gostaria de referenciá-lo em um trabalho meu. Obrigada!

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