Após alguns anos de luta pública partindo de grupos de usuários incomodados com os tratamentos forçados em andamento na Noruega, o ministro da saúde norueguês aprovou em 2015 enfermarias sem o uso obrigatório de medicações para tratamentos em saúde mental.
A aprovação partiu da necessidade de que fossem cessados os tratamentos compulsivos, quando usuários dos serviços públicos e pessoas em estado de dificuldade psicológica eram obrigadas a entrar em tratamentos necessariamente voltados para o uso das medicações.
A medida, apesar de ter despertado o debate no país, segue firme e apresentando bons resultados, mesmo que ainda se tenha uma falta de estudos mais aprofundados sobre os casos tratados e em tratamento.
As práticas baseiam-se na metodologia Open Dialogue, são estruturadas tendo como foco a autonomia, as necessidades e a experiência do usuário, sendo os profissionais atuantes preparados para exercer tal abordagem.
Conheça um pouco mais sobre a prática desenvolvida na saúde mental da Noruega!
Ministério da Saúde norueguês valida tratamentos sem o uso obrigatório da medicação em enfermarias do país
A medida tomada pelo ministro da saúde norueguês abarcou as quatro autoridades regionais do país, de forma que todas tivessem que trabalhar em função do desenvolvimento da iniciativa.
As enfermarias estão localizadas em hospitais públicos noruegueses, voltadas para os usuários que preferem não serem tratados com medicações psiquiátricas ou que estão em busca de ajuda para parar progressivamente com seus usos atuais de tais medicamentos, sendo essa uma opção totalmente autônoma por parte deles.
O principio fundamental de organização das enfermarias se baseia na ideia de que o usuário deve ter direito a escolher seu tratamento, e que feita essa escolha, os cuidados devem ser organizados em torno disso, querendo ele continuar com seu uso de neurolépticos ou não.
“Antes, quando as pessoas queriam ajuda, sempre era com base no que os hospitais queriam e não no que os pacientes queriam. Estávamos acostumados a dizer aos pacientes: “Isso é o que é melhor para você”.
Mas agora estamos dizendo a eles: “O que você realmente quer?” E eles podem dizer: “Eu sou livre; Eu posso decidir ”, disse Magnus Hald, chefe de serviços psiquiátricos do Hospital Universitário do Norte da Noruega (Hald, 2017).
A necessidade surge em considerar a perspectiva do paciente como igualmente valiosa á perspectiva do médico. Se os usuários dizem aquilo que querem ou não em seus tratamentos, isso deveria ser suficiente para que os profissionais os ouvissem, dentro da concepção norueguesa.
O modelo trata de ajudar as pessoas a avançarem em suas vidas da melhor maneira possível, seja acompanhando o uso de medicações, caso surja esse desejo, mas também apoiando e cuidando, caso não.
Ouvindo as vozes dos usuários – A história por trás da mudança
É uma história de muitas dimensões: organização política bem-sucedida por grupos de usuários; retrocesso de psiquiatras acadêmicos; debates sobre os méritos das drogas psiquiátricas; e um esforço – principalmente em Tromsø, mas também em outras regiões do país – de repensar o tratamento psiquiátrico.
A mudança legislada pelo Ministério da Saúde para o tratamento sem o uso obrigatório de medicamentos resultou de anos de lobby por parte de cinco organizações de usuários, que se reuniram pela primeira vez em 2011.
Durante os 15 anos anteriores ao decreto, todos os grupos de usuários observaram com consternação o aumento nos números de tratamentos forçados que se instaurou na Noruega, seguindo preceitos da psiquiatria moderna.
Estudos realizados no país descobririam que a Noruega tinha – até 2017 – a maior taxa de tratamento forçado de qualquer país da Europa, algo que os usuários consideravam vergonhoso e terrivelmente opressivo.
Ainda hoje, as equipes ambulatoriais chegam à casa de uma pessoa para garantir o cumprimento de uma ordem de tomar medicamentos, dizem os líderes dos grupos de usuários.
Um estudo relatou que o tratamento forçado foi 20 vezes mais comum na Noruega do que na Alemanha. E os resultados para pacientes psiquiátricos também não foram particularmente bons.
Além da insatisfação, pessoas estariam morrendo cedo, recursos estariam sendo mal investidos na saúde mental, os usuários não estariam satisfeitos; todo o pacote não estava bom.
Em 25 de novembro de 2015, o ministro norueguês da Saúde, Bent Høie, emitiu uma diretriz que efetivamente transformou a “recomendação” contida nas cartas anteriores enviadas por ele as autoridades responsáveis, em uma “ordem”.
As quatro autoridades regionais de saúde do país, em diálogo com organizações de usuários, precisariam a partir daquele momento criar um plano para medidas de tratamento sem o uso de drogas como uma obrigação.
“Muitos pacientes em cuidados de saúde mental não querem tratamento com medicamentos”, escreveu ele.
“Devemos ouvi-los e levar isso a sério. Ninguém será forçado a tomar medicação, desde que haja outras maneiras de fornecer os cuidados e tratamentos necessários” (Høie, 2015).
Dessa forma, a iniciativa se encaixou como um objetivo maior do que aquele que Høie havia definido em uma de suas primeiras cartas.
“Nós projetaremos um sistema de saúde que coloque o paciente no centro. . . envolve dar-lhes direitos. . . Os direitos dos pacientes devem ser fortalecidos ” (Høie, 2015).
O início das mudanças no sistema de saúde mental norueguês
O tratamento forçado significava também o uso forçado de antipsicóticos na Noruega, e com a controvérsia em curso, uma organização sem fins lucrativos, a Stiftelsen Humania, juntou-se a outras organizações para organizar um debate público sobre tal iniciativa, realizado em 8 de fevereiro de 2015 em Oslo.
O líder da Stiftelsen Humania, Einar Plyhn, um empresário cuja empresa, a Abstrakt Forlag, publica textos acadêmicos, passou a fazer parte do movimento, por exemplo, depois de sofrer a perda de sua esposa e filho para o suicídio; nenhum dos quais teria encontrado alívio nos tratamentos da psiquiatria.
Com a tomada de decisão do ministro da saúde, as coisas começaram a mudar, e em Tromsø, onde Magnus Hald é o diretor de serviços psiquiátricos, a autoridade regional de saúde abriria uma enfermaria dedicada somente a esses cuidados.
No resto do país, as autoridades regionais de saúde passaram a reservar leitos individuais para atendimentos sem remédios.
No entanto, com a maior parte deles para pacientes não-psicóticos, isto significou que a iniciativa não estaria servindo como uma alternativa ao tratamento forçado com o uso de medicações nos primeiros momentos da mudança.
Como um primeiro passo para criar essa estrutura, as instituições de saúde passariam a desenvolver programas de desenvolvimento progressivo das medidas, tendo um deles sido intitulado, por exemplo, como: “Uso correto e reduzido das medicações”.
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Sob o programa, as equipes prescreveriam drogas psiquiátricas em doses menores; monitorariam cuidadosamente os efeitos colaterais dos medicamentos; e descontinuariam as medicações, junto dos usuários, quando estas não estivessem produzindo um bom efeito.
Pouco tempo depois, ainda sim em resposta à diretiva do ministro da saúde, as entidades responsáveis criariam novos leitos livres de medicação – como no Hospital Lier – agora para pacientes psicóticos, assim como em outros hospitais para pacientes com distúrbios menos graves.
Doutores apoiadores do movimento falaram de como achavam que estavam entrando em uma nova era de cuidado, que apresentava também novas oportunidades e desafios.
Os desafios eram familiares: colegas que eram céticos em relação ao que estavam fazendo; expectativas da sociedade sobre como eles lidariam com usuários mais “violentos”; e também o temor de que nem tudo desse certo como todos estavam preparados para o fazer dar.
Suas preocupações eram muitas, mas em termos gerais, disseram sentir que estavam se aproximando de “novos e melhores tempos”.
“Estou neste ramo há 35 anos como psiquiatra e diretor clínico, e sou muito grato por poder participar da mudança que está lentamente chegando à psiquiatria agora, porque era realmente, realmente necessária”, disse o psiquiatra Carsten Bjerke, diretor médico do Hospital Psiquiátrico de Blakstad.
A enfermaria em Tromsø e a história por trás da abordagem sem o uso obrigatório de medicações
Talvez não surpreendentemente, o pensamento e as crenças de Magnus Hald – e, portanto, a ideologia presente na enfermaria de Tromsø para o tratamento sem o uso obrigatório de medicação – estão intimamente alinhados com a abordagem Open Dialogue.
Hald era amigo íntimo de Tom Andersen, professor de psiquiatria social na Universidade de Tromsø, que é frequentemente lembrado hoje como o fundador de abordagens baseadas em diálogos no país. Eles começaram a trabalhar juntos no final dos anos 1970 e desenvolveram equipes dessa natureza na Noruega.
Um princípio fundamental dessa abordagem, escreveu Hald, é que “as pessoas mudam de acordo com as circunstâncias em torno delas, e partes importantes dessas circunstâncias consistem em sua vida familiar na comunidade local”.
Os dois viajaram muito, ensinando sobre tal abordagem e, durante a década de 1980, desenvolveram um relacionamento com Jaakko Seikkula e a equipe do Open Dialogue em Tornio, na Finlândia.
Hald tinha visto pessoas com diferentes tipos de sintomas psiquiátricos se saírem bem sem drogas, e foi essa filosofia e experiência do passado que o deixaria ansioso para abraçar a diretiva do ministro da Saúde.
“Para mim, é uma possibilidade de organizar algo que é muito claro. Devemos dar às pessoas a possibilidade de escolherem não ser tratadas com neurolépticos quando estiverem passando por um sério problema mental. Sempre achei que isso era uma boa ideia” (Hald, 2017).
Com o entusiasmo do pesquisador, a Northern Regional Health Authority concedeu ao Hospital Universitário do Norte da Noruega um orçamento anual de 20 milhões de coroas norueguesas (US $ 2,4 milhões) para que fossem administrados os leitos referentes a medida.
“As pessoas que vêm aqui não querem medicação. Este é o desejo mais profundo delas. Dizemos: “Você pode vir até nós, queremos você como você é, venha até nós com suas ilusões, sua doença, seus pensamentos, sentimentos e história – tudo é bom”.
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“Nós podemos conhecê-los como eles são. Quando as pessoas experimentam isso, algo essencial acontece. Isso tira a desconfiança e o medo. E então a pessoa pode começar a crescer. Essa é a coisa mais importante”, disse Stian Omar Kistrand, ex-usuário de medicamentos e hoje um dos funcionários da enfermaria.
A enfermaria ainda não está servindo como uma alternativa ao tratamento forçado, mas uma vez que usuários entram em contato com ela, passam a fazer parte de um ambiente centrado em suas necessidades, um lugar que lhes proporciona autonomia.
Não há portas fechadas. Todos são livres para vir e depois irem para casa, se é isso que desejam. E enquanto ficam na enfermaria, podem organizar seu tempo como desejam.
As refeições são preparadas em uma cozinha da ala onde se encontra a enfermaria e servidas em uma grande sala comum, onde as pessoas costumam passar o tempo conversando.
Os programas terapêuticos proporcionam um dia que se desenrola de maneira bastante suave. Sessões reflexivas de terapia, caminhadas diárias no ar gelado e exercícios em um ginásio no andar de baixo fazem parte da programação semanal.
Quando essa “terapia” ocorre, os pacientes escrevem suas próprias descrições de como passaram, algo que se torna parte de seus registros de saúde.
Embora a equipe não use diagnósticos de DSM para descrever os participantes, a maioria já chega à ala com essas categorizações.
Os desafios do método e da implementação de tratamentos em saúde mental sem o uso obrigatório de medicação
Esse esforço em Tromsø terá um impacto no mundo maior da psiquiatria, e os resultados de seus pacientes precisarão ser rastreados e relatados em revistas médicas. Um plano para fazer essa pesquisa ainda está sendo elaborado (Whitaker, 2017).
Os céticos da iniciativa de medicina livre da Noruega levantaram questões sobre os tipos de “pacientes” que serão tratados na enfermaria de Tromsø, assim nos outros leitos sem medicamentos que vêm sendo instalados no país.
O pensamento é que eles seriam pacientes “menos doentes” e sem os problemas comportamentais – comportamentos violentos e assim por diante – que “exigiriam” o uso de antipsicóticos obrigatório.
A expectativa é que eles trabalhem com pacientes em estados mais agressivos da mesma maneira que trabalham com todos os pacientes, envolvendo-os em um diálogo respeitoso, deixando com que a atmosfera da enfermaria proporcione seus próprios efeitos calmantes.
Se um paciente fica agitado, buscam saber por que este estaria se comportando dessa maneira, mas através do diálogo.
É importante ressaltar que nesses ambientes não existem regras sobre a quebra de objetos, por exemplo. Busca-se fazer da atmosfera da enfermaria um lugar em que naturalmente esses episódios não aconteçam.
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“E caso alguém faça algo assim, será a comunidade toda o fazendo. Não queremos que as pessoas recorram a esses extremos para ter toda nossa atenção”, disse Astrup, membro da enfermaria e do Hospital de Tromso.
A sensação em torno dos profissionais noruegueses e apoiadores da medida é de confiança, de serem capazes de responder bem aos desafios que virão, buscando efetivar a chance que receberam de melhorar a saúde mental no país e também, a vida das pessoas.
Texto baseado na matéria de Robert Whitaker – jornalista e autor de dois livros sobre a história da psiquiatria – redigida após sua experiência conhecendo o serviço norueguês pessoalmente
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Meu Deus que amor ao próximo vcs tem quanta informações importantes obrigado por me disponibilizar taisconhecimentos foi adoecendo mentalmente que fui atrás de informações relevantes para a saúde mental e estou muito feliz de ter encontrado vcs do cenat
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Olá Fran, que depoimento lindo e muito obrigado por compartilhar sua história.
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Excelente reportagem informativa
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Exmos Srs.
Já tinha lido sobre a perspectiva de na Noruega tratar problemas do foro mental, nomeadamente a esquizofrenia, tanto quanto possivel sem ministrar medicação.
Gostaria de obter o email desta instituição na noruega.
Os Srs. têm possibilidade de obter o email e enviarem-me a fim de poder saber mais sobre as condições da instituição.
Muito obrigado pela atenção dispensada.
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Olá José Manuel, envio o contato do serviço na Noruega. email: post@unn.no site: https://unn.no/om-oss/university-hospital-of-north-norway#contact-us