A política de Redução de Danos no Brasil: conquistas, desafios e retrocessos

No mês de fevereiro de 2019 – coincidentemente o ano em que a primeira ação de Redução de Danos completava 30 anos no Brasil – o então Coordenador Geral de Saúde Mental, Álcool e outras drogas, Quirino Cordeiro Junior, lançou a Nota Técnica nº 11 (Brasil, 2019), esclarecendo sobre as mudanças para uma “nova” Política Nacional de Saúde Mental e, principalmente, sobre “novas” Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas, nosso maior foco nesse artigo.

Basicamente, essa “nova” política sobre drogas é baseada no uso da abstinência para o tratamento da dependência química e no investimento em comunidades terapêuticas, representando verdadeiros retrocessos em relação à política de Redução de Danos (RD) que vinha sendo desenvolvida, de maneira exitosa, no Brasil.

Antes de nos aprofundarmos nessa discussão e entendermos as consequências dessas mudanças, é preciso saber as origens da política de RD.

Mas afinal, o que é Redução de Danos (RD)?

De acordo com o “Manual de Redução de Danos: saúde e cidadania”, do Ministério da Saúde (Brasil, 2001), a política de RD constitui um conjunto de ações e medidas de saúde pública com o objetivo de minimizar as possíveis consequências adversas do uso e abuso de drogas.

Além disso, o que norteia e orienta esse princípio é o respeito à liberdade de escolha do usuário que, por vezes, não consegue ou não quer deixar de fazer uso da droga, porém sem deixar de lado o cuidar de si (Conte, 2015).

Portanto, a proposta da RD é não colocar a abstinência como condição para o vínculo terapêutico e o acesso à saúde.

Assim, ainda segundo Conte (2015), essa forma de abordagem do uso de substâncias psicoativas proporciona uma mudança de visão sobre o usuário e a droga.

A RD, além de reconhecer as singularidades do usuário, constrói junto com ele diversas estratégias que tenham como foco a defesa de sua vida.

Na atenção básica, com a publicação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), em 2011, o conceito de RD é referido pela primeira vez em publicação federal, reforçando uma mudança de paradigma ético e político do cuidado e atenção ao usuário de drogas.

Nessa perspectiva, a redução de danos tem com objetivo “desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades” (Brasil, 2012, pg. 21).

Além disso, de acordo com Trino et al (2015), a RD valoriza estratégias que sejam de proteção, de cuidado e autocuidado do indivíduo, possibilitando mudanças de atitudes diante de situações de vulnerabilidade, contribuindo para:

possibilitar informações adequadas sobre riscos, danos, práticas seguras, saúde, cidadania e direitos, criando dessa forma melhores condições para que as pessoas possam tomar suas decisões, buscar atendimento de saúde (se necessários) e estarem inseridas socialmente em um contexto de garantias de direitos e cidadania.” (p. 40)

RD no mundo

As primeiras práticas relacionadas à RD ocorreram em 1926, na Inglaterra, através do Relatório Rolleston, que autorizava os profissionais médicos a prescreverem opióides (em particular a heroína), de acordo com critérios específicos, no tratamento de pessoas com dependência a essas substâncias:

“o manejo da síndrome de abstinência em tratamentos com o objetivo de cura; quando ficasse demonstrado que, após prolongadas tentativas de cura, o uso da droga não pode ser seguramente descontinuado; quando ficasse demonstrado que o paciente apenas é capaz de levar uma vida normal e produtiva se uma dose mínima de droga for administrada regularmente, mas ficasse incapaz disso quando a droga fosse inteiramente descontinuada” (Relatório Rolleston, 1926)

Contudo, somente no início da década de 80, na Holanda, nas cidades de Amsterdam e Rotterdam, foi que surgiu o primeiro programa legalizado de Redução de Danos, através da prática de troca de seringas usadas por novas, devido ao número crescente de mortes relacionadas à AIDS e á alta prevalência de hepatites B e C, pelo compartilhamento de seringas.

Portanto, esse programa implementado nos anos 80, era uma das estratégias fundamentais para evitar a transmissão do HIV entre os UDI, mas também um dos tratamentos a esses usuários para uma melhor condição de saúde, diante das terapias tradicionais pouco exitosas da época, orientadas pela abstinência (Surjus & Silva, 2019).

RD no Brasil

No Brasil, a primeira iniciativa formal voltada para a RD, foi em 1989, no município de Santos, em São Paulo.

Nessa época, o município apresentava uma das maiores taxas de infecção por HIV. Seguindo o exemplo do que havia se mostrado exitoso na Europa para a redução da transmissão do HIV entre usuários de drogas injetáveis, a Secretaria de saúde local implantou o primeiro programa destinado à troca de seringas, através do Programa Municipal de AIDS.

No entanto, esse programa foi interrompido por meio judicial, pois alegava-se, na época, que a prática de troca de seringas seria uma ação que incentivava o consumo de drogas.

Tal ação foi baseada na Lei 6.368 de 1976, que dispunha sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes e autuou os coordenadores dos serviços de saúde onde havia troca de seringas como “traficantes e facilitadores ao uso de drogas” (Ribeiro, 2013).

Após esse lamentável incidente, vários movimentos surgiram tanto em ONGs quanto em universidades, associações de usuários de drogas e até em organizações governamentais, onde as ações de RD mostravam-se eficazes diante do aumento crescente tanto das drogas como das taxas de transmissão do HIV e das hepatites B e C.

Com isso, em 1995, através da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisadores e profissionais do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD) implantaram, de forma pioneira, não só o Programa de Redução de Danos, com troca de seringas, como também o primeiro Consultório de Rua no Brasil.

Os Consultórios na Rua (CnaR), conforme explicam Trino et al. (2015), surgiram a partir da junção das experiências da Atenção Básica, dirigidas à população em situação de rua em algumas cidades brasileiras e dos Consultórios de Rua, focados na atenção à dependência química desta população, através de projetos promovidos pela Coordenação Nacional de Saúde Mental. Como serviço componente da Atenção Básica na Rede de Atenção Psicossocial, o CnaR deve contar com uma equipe multiprofissional e integrar suas ações junto às Unidades Básicas de Saúde, CAPS, Serviços de Urgência e Emergência e outros pontos de atenção. Os CnaR devem ter vínculo com pelo menos uma Unidade Básica de Saúde no território em que atende proporcionando, assim, uma importante porta de entrada para que a população em situação de rua possa vincular-se e inserir-se na RAPS e no SUS. (Trino et al, 2015, p. 28)

Portanto, de acordo com Silva & Pinheiro (2019), as primeiras abordagens de RD tinham como propósito primeiro, reduzir a crescente disseminação do HIV, porém, com o passar dos anos, o avanço dessas práticas de RD vai se consolidando e ganhando espaço, com objetivos de olhar para os usuários de drogas com “pensamentos menos centrados no controle e na repressão” “visando o bem-estar da pessoa, buscando a melhoria dele como também da população e operando com os princípios da Reforma Psiquiátrica e do SUS.

Assim, a Política de RD nos serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, como os CAPS Ad (para tratamento de pessoas que fazem uso de álcool ou outras drogas), é regulamentada por meio da Portaria N° 1.059 de 2006, sempre contando com equipes multiprofissionais.

Nota Técnica 11/2019 e Lei 13.840/2019: principais retrocessos na Política sobre Drogas

Em 2019, o governo federal aprovou o que chamaram de “nova política de drogas”, que determina a internação voluntária e involuntária de usuários(as) que fazem uso ou abuso de substâncias psicoativas, além de incluir as Comunidades Terapêuticas (CT) como instrumento da viabilização dessa “nova política”.

A partir dessa aprovação, o governo federal vem alterando cada vez mais a Política Nacional de Saúde Mental e de Álcool e outras Drogas, aprovando resoluções internas do Ministério da Saúde, como a Nota Técnica 11/2019 e também a aprovação da Lei 13.840/2019.

Para Moreira (2019), na Política de Álcool e outras Drogas, vinha-se lutando contra a implementação das CT na RAPS, pois tais entidades não têm capacidade para lidar com problemas complexos, como é o abuso de substâncias.

Tais CT são, majoritariamente, vinculadas a igrejas e organizações religiosas bem como não dispõem de aparato médico. Em geral essas comunidades são marcadas por uma estrita rotina de atividades de oração e trabalho e, boa parte delas, localiza-se em fazendas distantes de áreas urbanas visando o distanciamento completo do usuário a tudo que lembre o vício, utilizando uma metodologia inversa à da Redução de Danos.

Além disso, as CT tratam o uso e abuso de álcool e outras drogas como um problema moral.

As alterações atuais na Política Nacional de Drogas são reflexos da onda ultraconservadora e de fundamentalismo religioso que assola nosso país.

Sobre a inclusão das comunidades terapêuticas, a nova lei determina, em seu artigo art. 26-A, que:

“O acolhimento do usuário ou dependente de drogas na comunidade terapêutica acolhedora caracteriza-se por: I – oferta de projetos terapêuticos ao usuário ou dependente de drogas que visam à abstinência; II – adesão e permanência voluntária, formalizadas por escrito, entendida como uma etapa transitória para a reinserção social e econômica do usuário ou dependente de drogas; III – ambiente residencial, propício à formação de vínculos, com a convivência entre os pares, atividades práticas de valor educativo e a promoção do desenvolvimento pessoal, vocacionada para acolhimento ao usuário ou dependente de drogas em vulnerabilidade social; IV – avaliação médica prévia; V – elaboração de plano individual de atendimento na forma do art. 23-B desta Lei; e VI – vedação de isolamento físico do usuário ou dependente de drogas. § 1º Não são elegíveis para o acolhimento as pessoas com comprometimentos biológicos e psicológicos de natureza grave que mereçam atenção médico-hospitalar contínua ou de emergência, caso em que deverão ser encaminhadas à rede de saúde.” (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019)

As comunidades terapêuticas, conforme aponta Moreira (2019), “têm conquistado, nos últimos anos, um poder político e econômico bastante preocupante.

Estas instituições se constituem como “pequenos manicômios”, onde os direitos dos(as) usuários(as) são sistematicamente desrespeitados”. E a autora ainda complementa:

“As ações efetuadas nessas instituições, muitas vezes, são “atividades de cunho religioso, tais como: aulas, cultos, oração, leitura da Bíblia (‘como intervenção divina de salvamento da alma e obediência’), bem como grupos de espiritualidade”. Por esses motivos, compreende-se que as comunidades terapêuticas não são espaços para tratamento de pessoas que abusam ou criam dependência de substâncias psicoativas.” (p. 5)

Apesar de todas as denúncias já realizadas sobre as CT, o governo federal, em 2018, anunciou mais verbas para investir n a criação de mais de 20 mil vagas nas CT, diminuindo (ainda mais) o financiamento para manutenção e ampliação dos principais serviços substitutivos da RAPS, como os diversos tipos de CAPS, Residências Terapêuticas e Centros de Convivência.

A respeito desses serviços substitutivos, a Nota Técnica 11/2019 desse governo deixa claro que não há tais tipos de serviços que substituam os hospitais psiquiátricos, afirmando que o hospital psiquiátrico pode ser humanizado necessitando apenas de mais investimento, o que vai contra os princípios e orientações da Lei 10.2016/2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica.

A Nota Técnica 11/2019 também traz explicações que demonstram, segundo este governo, que a técnica de eletroconvulsoterapia (ECT) ou, como é mais conhecida, eletrochoque, “é uma tecnologia importante no tratamento de doenças mentais”.

Isso só demonstra os retrocessos sofridos pela Reforma Psiquiátrica e pela Luta Antimanicomial e o quão retrógrado e conservador é o pensamento desse governo em relação à política de saúde mental e também da política de álcool e outras drogas.

Outra demonstração de retrocesso e de ultraconservadorismo do atual governo, de acordo com Moreira (2019), é o constante questionamento a resultados de pesquisas realizadas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sendo a principal delas intitulada “Perfil dos usuários de crack nas 26 capitais, Distrito Federal, 9 regiões metropolitanas e Brasil”, da qual tive o prazer de participar enquanto coordenador do polo do Rio de Janeiro e também como entrevistador, entre 2010 e 2013.

Os resultados dessa pesquisa evidenciaram não haver nenhuma “epidemia do crack”, como muitos pensavam, apontando ainda que o álcool é a droga que mais causa danos no Brasil. Importante destacar que com a venda de cigarros e de bebidas alcoólicas (ambas substâncias lícitas), o governo recebe recursos provenientes dos impostos sobre essas mercadorias e sobre os serviços que envolvem suas produções (Moreira, 2019).

Por fim, outra questão importante a destacar da Nota Técnica 11/2019 é a internação involuntária.

A nova lei, além de ampliar e obrigar a internação psiquiátrica dos usuários de drogas, determina um prazo máximo de 90 dias para a internação involuntária.

Importante ressaltar que na Lei 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica) não há um prazo estabelecido para a internação involuntária, visto que o usuário pode ter uma melhora de seu quadro bem antes de um prazo determinado.

Moreira (2019) ainda ressalta que “a internação involuntária não deve ser uma regra, e sim a exceção, tanto que a Lei 10.216/2001 obriga a notificação dessas internações para as autoridades competentes, em, no máximo, 72 horas”.

Portanto, para o governo conseguir resolver uma questão tão complexa como o uso e abuso de drogas, não será propondo e nem incentivando a internação involuntária desses indivíduos que o fará.

Essa questão deve ser tratada como um problema de Saúde Pública, cuidando dos indivíduos em seu território e incluindo-os no seu processo de recuperação, conforme preconiza a Lei 10.2016, “evitando, assim, o enclausuramento e as longas internações, para que estes possam continuar vivendo e convivendo em sociedade” (Moreira, 2019).

(In) Concluindo…

Em 2019, a política de RD fez 30 anos, desde que se realizou o primeiro programa de troca de seringas para usuários de drogas injetáveis, em 1989, no município de Santos (SP).

Um conjunto de estratégias que visa reduzir os efeitos negativos do uso de drogas, sem a necessidade de abstinência, respeitando-se o direito das cidadãs e dos cidadãos ao cuidado à saúde.

A política de RD mostrou ter efeitos positivos reconhecidos em todo o mundo e que alcançam toda a sociedade, ao atuar na prevenção da transmissão de doenças, como Hepatites e Aids, entre usuários e também para aqueles que não usam drogas, além de fazer parte de uma política cujas ações estão voltadas para a Saúde Pública e para os Direitos Humanos.

Como bem pontuou Antônio Nery Filho, médico psiquiatra, fundador, em 1985, do Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (CETAD/UFBA):

“A redução de danos não se cria ou se exclui por decretos ou portarias. A RD nasce, se desenvolve e transforma pessoas, cuidadores e pacientes, a partir dos ‘bons encontros’, no reconhecimento recíproco e na honestidade das diferenças e das diferentes escolhas que cada um(a) pode fazer em suas vidas” (In: Surjus & Silva, 2019, p. 7).

Para concluir, citando, novamente, o grande Antônio Nery Filho, que parafraseou, em 2019, o poeta português Fernando Pessoa, diante dos tempos estranhos e de retrocesso que vivemos: “Resistir é preciso, viver não é preciso”.

Viva (e vivamos) a resistência!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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2 Comentários


  1. Infelizmente a negligencia de setores do atual governo com relação a politica de Redução de danos prejudica trabalhos importantes voltados ao amparo da população que tem as ruas e as sarjetas como abrigo.
    Importante o trabalho do Dr. Antonio Nery Filho que ao criar o CETAD/UFBA tem contribuído de maneira incansável por esta causa.

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