Discutindo saúde mental e sexualidade infanto-juvenil: “de pequenino é que se torce o pepino?”

No Brasil, a despeito das conquistas e avanços da Reforma Psiquiátrica no campo da Saúde Mental e dos Direitos Humanos, a abordagem da sexualidade, a prevenção das IST/Aids e a discussão de gênero entre os usuários dos serviços de saúde mental estiveram ausentes das reflexões acerca dos temas emergentes, urgentes e relevantes no contexto da luta antimanicomial.

Se entre adultos esses temas ainda são carregados de preconceitos e estigmas, como trabalhar essas questões entre crianças e adolescentes? Por que discutir sexualidade e gênero na infância e adolescência ainda é tabu? Qual é o papel dos pais, da escola e dos profissionais de saúde nesse contexto?

A educação em sexualidade entre crianças e adolescentes continua sendo um grande nó a ser desfeito, principalmente nas sociedades ocidentais.

É preciso superar o mito de que a educação em sexualidade pode erotizar ou incentivar a iniciação sexual precoce de crianças e adolescentes.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde / OMS (2015), muito pelo contrário. A OMS já comprovou que, quanto mais informação de qualidade sobre sexualidade, mais tarde os adolescentes iniciam sua vida sexual e quanto menos informação, mais precocemente se inicia a vida sexual.

Porém, mais do que falar somente sobre sexo, precisamos falar sobre sexualidade, um conceito muito mais amplo, que se refere às vivências, descobertas de mundo, identidades, sentimentos, emoções, bem-estar, consciência corporal, entre tantos outros assuntos.

Além disso, falar de sexualidade com crianças e adolescentes também é uma ferramenta importante para combater a violência e abusos sexuais sofridos por essa população.

Violência e Abuso Sexual: a realidade nua e crua

De acordo com os dados do Anuário de Segurança Pública (2019), no Brasil, a cada 4 horas, uma menina é estuprada e violentada ou por seu pai, padrasto, tio, primo ou vizinho.

Neste último levantamento, o documento aponta que 63,8% desses atos de violência tiveram como vítimas jovens de até 14 anos de idade ou pessoas com momentânea incapacidade de oferecer resistência e se defender devido alguma enfermidade.

Os dados descritos no Anuário de 2019 ainda demonstra que entre as vítimas do gênero feminino atinge-se um ápice aos 13 anos, porém, o principal grupo atingido entre elas são vítimas de até 9 anos.

Em relação aos dados de violência sofrida pelas vítimas do gênero masculino, percebe-se que estes são ainda mais jovens, sendo menores de 7 anos!!!

Este levantamento, realizado pelo 13° Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), tipifica o agressor dessas crianças e adolescentes como sendo 96,3% homens e 75,9% destes sendo conhecidos das vítimas, como pais, padrastos, tios, primos ou vizinhos.

Esse dado impressiona por serem agressores que convivem ou estão instalados próximos ao ambiente familiar das vítimas, desmistificando o mito do qual o agressor é sempre alguém de fora ou que é um desconhecido.

Além disso, o documento ainda chama a atenção para essas agressões que, pela proximidade do agressor à vítima, não são agressões repentinas e que podem estar ocorrendo há tempos, sem chance ou possibilidade da vítima pedir ajuda e socorro.

Apenas como um exemplo dessa impossibilidade de pedir ajuda, quem não se lembra (difícil de esquecer, não é mesmo?) do caso da menina de 10 anos que acabou engravidando de seu agressor, seu tio, que já vinha violentando-a há 4 anos, ou seja, desde que a menina tinha 6 anos de idade, ocorrido em agosto de 2020?

O caso aconteceu no município de São Mateus, no Espírito Santo, onde a menina de 10 anos só conseguiu ajuda para sair das garras de seu algoz, por ter sido engravidada pelo mesmo após sofrer por 4 anos com a violência do “tio” (marido de sua tia).

O ocorrido ganhou repercussão nacional e internacional, pois grupos conservadores e extremistas estavam mais preocupados no procedimento de aborto ao qual a ela deveria ser submetida do que com a vida despedaçada da menina de 10 anos!!!

De acordo com a Legislação Brasileira e seguindo as normas técnicas de atenção humanizada ao abortamento do Ministério da Saúde (2011), era assegurado à vítima duplamente o direito ao aborto: primeiro, por ter sido vítima de violência sexual e, segundo, pelos riscos físicos e psicológicos de uma gestação indesejada na sua idade.

O desfecho desta triste história, sabemos. Em um primeiro momento, a menina foi impedida de realizar o aborto na cidade onde morava, pois a equipe do Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes se recusou a realizar o procedimento, alegando que a idade gestacional (22 semanas e 4 dias de gestação) não estaria amparada pela legislação que permite tal procedimento no Brasil.

A equipe desses “profissionais” ignorou totalmente o Código Penal e a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2011) e a vítima teve que ser referenciada para outro serviço em outro estado.

Porém, seu martírio não terminou por aí, pois ao dar entrada no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros da Universidade de Pernambuco, uma multidão de religiosos – com a conivência e incitamento de um Governo Federal – aglomerou-se na porta do serviço de saúde para impedir a entrada da equipe de profissionais que iriam realizar o procedimento, além de bradarem que a menina de 10 anos “era uma assassina”!!!

Absurdos como esse serviram apenas para revitimizar e violentar novamente a menina de 10 anos que, mesmo conseguido ter acesso ao seu direito reprodutivo, sofrerá com as marcas deixadas pelo seu agressor, pelo o resto de sua vida.

Esse caso, como tantos outros que desconhecemos (ou fingimos desconhecer) ou que acontecem diariamente em nosso país, poderia ter sido evitado ou pelo menos ter diminuído sua constância, caso a educação em sexualidade estivesse presente e fizesse parte tanto das conversas entre a família quanto na educação formal da escola, sem que a sociedade distorcesse sua real importância para a saúde mental de crianças e adolescentes.

Para Bontempo & Pereira (2012), qualquer tipo de violência, principalmente em se tratando de crianças e adolescentes, é e deve ser considerada um problema mundial de saúde pública, podendo acarretar problemas psicológicos, emocionais, cognitivos e sociais durante a fase de vida em que estão ou até mesmo nas fases que se seguem.

Ansiedade, transtornos depressivos, alucinações, baixo desempenho escolar, alterações de memória, comportamento agressivo, defensivos ou violentos, retraimento e até tentativas de suicídio são algumas das consequências da violência e abuso sexuais na saúde mental de crianças e adolescentes, fazendo com que sempre pais, responsáveis, familiares e professores estejam alertas a esses sinais ou a quaisquer outros que indiquem mudanças repentinas no comportamento e na maneira como se colocam na vida.

Educação, informação e conhecimentos: ferramentas contra estigmas, tabus e violências

Esse caso, como tantos outros que desconhecemos (ou fingimos desconhecer) ou que acontecem diariamente em nosso país, poderia ter sido evitado ou pelo menos ter diminuído sua constância, caso a educação em sexualidade estivesse presente e fizesse parte tanto das conversas entre a família quanto na educação formal da escola, sem que a sociedade distorcesse sua real importância para a saúde mental de crianças e adolescentes.

Em documento produzido pela UNESCO em 2014, intitulado “Orientações técnicas de educação em sexualidade para o cenário brasileiro: tópicos e objetivos de aprendizagem” e elaborado em colaboração com a UNAIDS, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), ONU Mulheres e a Organização Mundial da Saúde (OMS), defende-se uma educação em sexualidade abrangente e de qualidade para “promover a saúde e bem-estar, o respeito aos direitos humanos e à igualdade de gênero e o empoderamento de crianças e adolescentes para levarem vidas saudáveis, seguras e produtivas”.

A então Diretora-Geral da UNESCO, Audrey Azoulay, na ocasião do lançamento do documento em 2014, afirmou que o lugar da educação em sexualidade encontra-se dentro de um quadro de direitos humanos e de igualdade de gênero.

Além disso, ao promover a aprendizagem estruturada sobre sexualidade, desenvolvem-se componentes essenciais para programas efetivos de educação em sexualidade e as orientações que permitam que as autoridades nacionais possam elaborar currículos mais abrangentes sobre esses temas, trazendo um impacto mais positivo na saúde e no bem-estar de crianças e adolescentes.

A publicação da UNESCO foi desenvolvida para auxiliar os profissionais formuladores de Políticas de Educação em todo o mundo na construção de currículos precisos e apropriados à idade de crianças e adolescentes de 5 a 18 anos, demonstrando que a educação em sexualidade:

  • à auxilia os jovens a se tornarem mais responsáveis em suas atitudes e comportamentos em relação à saúde sexual e reprodutiva;
  • à é essencial para combater o abandono escolar de meninas devido ao casamento infantil ou forçado (existente em diversos países), gravidez na adolescência e problemas de saúde sexual e reprodutiva;
  • à é extremamente necessária pois, em algumas partes do mundo, duas a cada três meninas relataram não ter ideia do que estava acontecendo com elas quando começaram a menstruar e as complicações na gravidez e no parto são a segunda causa de óbito entre meninas de 15 a 19 anos;
  • à não aumenta a atividade sexual, o comportamento sexual de risco ou as taxas de infecção pelo HIV ou outras IST e apresentando evidências que programas de abstinência não impedem a iniciação sexual dita “precoce” e nem reduzem a frequência de sexo e números de parceiros ou parceiras entre os jovens.

A Orientação Técnica da UNESCO ainda identifica a necessidade urgente de uma educação em sexualidade abrangente e qualidade para que os profissionais (da Saúde e da Educação) possam fornecer informações e orientações, principalmente aos adolescentes, sobre a transição da infância para a idade adulta, abordando os desafios físicos, sociais e emocionais.

Além do enfrentamento aos desafios oriundos de questões da saúde sexual e reprodutiva, que são bastante desafiadores particularmente durante a puberdade, tais como: acesso à contracepção de qualidade; gravidez precoce; violência de gênero; IST e HIV/Aids, dentre outros.

Por fim, o documento enfatiza a importância da educação em sexualidade nas escolas complementar ou compensar a grande quantidade de material de diferentes qualidades que crianças e adolescentes encontram atualmente na Internet, ajudando-os a identificar e enfrentar casos cada vez mais comum de ciberbullying que, muitas vezes, podem leva-los a situações reais de violência e abuso sexuais.

Conclusões? Não, um trabalho constante…

Retornando ao título desse artigo através de uma brincadeira com o ditado popular “de pequenino é que se torce o pepino?”, reforço a importância da educação em sexualidade “desde pequenino/a” ser uma das ferramentas fundamentais para que crianças e adolescentes possam seguir com uma saúde mental de qualidade em sua formação, livres de qualquer forma de violência.

Assim, uma educação em sexualidade bem orientada, respeitando o desenvolvimento psicossexual típico de cada faixa etária, é uma das formas mais eficazes para diminuir a vulnerabilidade de crianças e adolescentes diante de situações como violência e abuso sexual, gravidez precoce e IST/Aids.

A educação em sexualidade pode ser oferecida e estar presente nas escolas em forma de oficinas, rodas de conversa ou qualquer espaço lúdico (artes plásticas, teatro…) que trabalhe o subjetivo de forma objetiva, tornando a abordagem dos assuntos mais leves e simplificados, sem julgamentos e respeitando o tempo de cada pessoa.

Importante sempre lembrarmos de envolver nesse processo os responsáveis e outros familiares das crianças e adolescentes que se disponham a participar desses espaços de diálogo.

Para Fontes et al (2017), programas de prevenção voltados não só para as crianças e adolescentes como para seus cuidadores constituem fontes de combate à violência sexual.

Grande parte desses programas tem como principal objetivo levar conhecimento e capacidades para que possam reconhecer possíveis situações de abuso sexual e, assim, proporcionar um maior diálogo sobre o tema, seja na escola, em casa ou na sociedade.

Conhecimento e educação ainda são os melhores instrumentos contra o estigma, o preconceito e à quebra de paradigmas e mudanças em nossa sociedade.

Como já disse o grande educador e filósofo brasileiro Paulo Freire: “A educação modela as almas e recria os corações. Ela é a alavanca das mudanças sociais”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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– BRANDÃO, ER; LOPES, RFF. “Não é competência do professor ser sexólogo”: O debate público sobre gênero e sexualidade no Plano Nacional de Educação. Civitas, Rev. Ciênc. Soc., Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 100-123, Apr. 2018. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-60892018000100100&lng=en&nrm=isso

– BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Atenção Humanizada ao abortamento: nota técnica. Ministério da Saúde, secretaria de Atenção à Saúde, Área Técnica de Saúde da Mulher. 2ª ed, Brasília: Ministério da Saúde, 2011. 60 p. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento_norma_tecnica_2ed.pdf

– CAETANO, M; LIMA, CHL; CASTRO, AM. Diversidade sexual, gênero e sexualidades: temas importantes à educação democrática. Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 16, n. 3, p.5-16 jul/set 2019. http://journal.unoeste.br/index.php/ch/article/view/3179/2892

– DYER, K & NAIR, RD. Why Don’t Healthcare Professionals Talk About Sex? A Systematic Review of Recent Qualitative Studies Conducted in the United Kingdom. The Journal of Sexual Medicine, v. 10(11): pp 2658-2670, novembro, 2013. https://www.jsm.jsexmed.org/article/S1743-6095(15)30171-5/fulltext

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– MANN, CG, OLIVEIRA, SB. & OLIVEIRA, CSS. Guia para Profissionais de Saúde Mental / Sexualidade & DST/AIDS: discutindo o subjetivo de forma objetiva. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia / IFB, 2002. http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/sexualidade_saude.pdf

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– UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Representação no Brasil). Orientações técnicas de educação em sexualidade para o cenário brasileiro: tópicos e objetivos de aprendizagem. Brasília: UNESCO, 2014. 53 p. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000227762

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