A Política de Drogas em Portugal: Uma união entre Atenção Básica e Saúde Mental

Desde a segunda metade do século XX, muito se debate sobre a questão das drogas na atenção básica ao redor do mundo. Mudanças ocorreram, as sociedades foram mudando, mas ainda assim se observavam problemas relacionados a elas no dia a dia de muitas pessoas.

Durante a década de 80, por exemplo, como forma de solucionar o crescimento do índice de mortes em decorrência do uso excessivo, aderiu-se em muitos países do mundo o discurso e a postura de “guerra ás drogas”, liderada principalmente pelos Estados Unidos – algo que deixaria muito a desejar pelo efeito esperado.

Na Europa, essa falha teria reflexos sobre os membros da União Europeia, que passariam a adotar medidas menos repressivas com relação as drogas em si, para colocarem seu foco sob a vida do próprio usuário e sob a questão de saúde pública como um todo, algo que as drogas teriam se tornado.

O objetivo em grande parte do continente europeu torna-se então o cuidar da saúde do dependente/usuário e também do bem-estar social da sociedade.

Um dos pioneiros deste movimento foi Portugal, que em 2001 descriminalizaria as drogas dentro do país, e que ao contrário do que os críticos da medida esperavam, teria um grandessíssimo sucesso a ser alcançado.

Portugal se transformaria no país com um dos menores índices de mortes e doenças contraídas pelo uso de drogas; uma referência mundial nesse aspecto; e é sobre essa política de atenção básica e saúde mental que iremos tratar no texto de hoje.

A política de descriminalização das drogas em Portugal

Após estudos terem sido realizados pela Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga, composta por diversos especialistas e pesquisadores da área da saúde, tem-se oficialmente, no ano de 2001, o decreto em lei da descriminalização das drogas em Portugal.

A ideia do decreto, algo que já teria sido demonstrado pela mesma Comissão em 1998, seria a de não apenas reduzir o abuso e o uso de drogas pela população portuguesa, mas também a de incentivar a busca voluntária, pelos próprios usuários, do tratamento como uma medida alternativa e autônoma as então recorrentes sentenças de prisão.

Um ponto importante de se destacar é necessidade de evitar o equívoco que muito acontece em confundir o significado de descriminalização como sendo o mesmo de legalização.

Portugal não legalizou as drogas em seu país, sabendo que isso significaria a não existência de proibições com relação a elas.

O que de fato acontece em Portugal é a não ocorrência de prisões ou de processos judiciais para aqueles com uma determinada quantidade de produtos como a maconha, a cocaína, entre outras drogas.

O comércio ainda continua sendo proibido, mas sua produção e porte para uso pessoal não se enquadram mais como um crime.

Na legislação atual, Lei n. 30/2000, o consumo, a aquisição e a detenção de plantas, substâncias ou preparos indicados nas tabelas da referida lei são tratados como “contra ordenação”.

A lei prevê que a aquisição e a retenção para o consumo individual não pode exceder aquela quantidade considerada como “necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias”, sendo qualquer situação a exceder esta, algo de enquadro penal.

Para além do acerto que Portugal obteve com a descriminalização das drogas e de seus usuários, também é preciso ter claro que o peso dessa política no país ficaria a cargo de um sistema de saúde e atenção básica bem planejado e preparado.

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O Estado português, para além de políticas adequadas em atender à demanda dos que se disporiam a busca de tratamento na atenção básica, daria também respostas na área da redução de riscos e da minimização de danos (RRMD) fomentando estruturas e programas de apoio nas ruas, de inserção social, acolhimento e reabilitação dos mais necessitados.

Apesar da liberdade de que se dispõe em Portugal, tem-se que quando parado pelas entidades responsáveis da atenção básica por porte ou uso de drogas, o indivíduo normalmente é encaminhado para uma comissão responsável por avaliar seu quadro individual, considerando ou não a pessoa como usuária, as condições de uso dessa droga e etc.

Dessa maneira, a pessoa é guiada de forma facultativa para o tratamento de sua dependência, recomendando-se o acompanhamento terapêutico; ambos serviços oferecidos pelo sistema de saúde português de forma gratuita, buscando a reinserção social dessa pessoa em condições consideradas estáveis.

Atualmente, o consumo ainda é considerado um ato ilícito, mas no lugar da prisão, há a multa, a reprimenda e o encaminhamento para o tratamento, situação esta diferente da que ocorre em outros países da Europa, onde as sanções normalmente levam a processos penais somente.

Os pontos principais da estratégia portuguesa de prevenção as drogas

1) A prevenção, área onde o principal objetivo é a intervenção sobre as causas do fenômeno, procurando que este não venha a manifestar-se futuramente, fomentando não apenas o conhecimento sobre o mesmo, mas também ampliando a abrangência, eficácia, eficiência e qualidade dos programas de prevenção implementados na atenção básica.

2) O tratamento, área que evidência a rede de recursos de saúde e sócio sanitários, públicos e privados, promotores da prestação de programas de cuidados à população com consumos problemáticos de drogas, baseados em abordagens terapêuticas multidisciplinares integradas, articuladas e complementares.

3) A redução de riscos e minimização de danos, vetor que assume como princípio fundamental uma abordagem pragmática e humanista ao fenômeno da toxicodependência.

Numa perspectiva de saúde pública e atenção básica, em que o objetivo é focalizar a intervenção nas consequências de saúde e sociais que decorrem desse consumo, ainda que se procure privilegiar a redução dos riscos associados,  deverá sempre ter em conta, por força de uma atitude pragmática, a minimização dos danos associados a ele.

4) A reinserção social, a intervenção – que redunda em processos de socialização e/ou ressocialização – e a procura da construção de um projeto de vida sustentado, orientado para a realização pessoal, através do envolvimento do agregado familiar e da comunidade em geral.

5) A dissuasão, que decorre da aplicação do quadro legal vigente, assentada numa perspectiva de descriminalização do comportamento de uso, potenciando a responsabilização pessoal através da aplicação de medidas sancionatórias à população consumidora, em alternativa a medidas que na sua essência são consideradas mais punitivas.

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A operacionalização desse plano obedeceu à implementação de fases sequenciais e foi efetivada com a criação de Programas de Respostas Integradas (PRI) em cada território, integrando respostas interdisciplinares de prevenção na atenção básica, tratamento, redução de riscos e minimização de danos, tratamento e reinserção.

(Fonte: SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências) – SNS Portugal)

Os dados e estatísticas de êxito atingidas pelo modelo português 

A política portuguesa de drogas em consonância com a atenção básica do país, demonstrou ao longo dos anos seu êxito na diminuição de índices históricos preocupantes registrados em Portugal antes da descriminalização.

No que se refere às taxas de uso, por exemplo, do pós‑descriminalização, Portugal tem as mais baixas da União Europeia quando comparadas com outros países onde se configura a criminalização das drogas (Martins, 2013).

Para João Castelo-Branco Goulão, presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência de Portugal, antes do decreto, os dependentes de drogas tinham receio em procurar os serviços de tratamento por medo de serem presos ou processados.

Tudo isso mudou quando o usuário passou a ser considerado não mais um criminoso, para ser enquadrado como um possível dependente com necessidade de auxilio e ajuda para superar seu vício em drogas e viver bem.

Os índices de procura por serviços de tratamento fornecidos pela atenção básica do país, por exemplo, só aumentou em todos esses anos.

O número de pessoas em tratamento de substituição subiu de 6.040 (1999) para 14.877 (2003) – mais que o dobro em um curto espaço de tempo.

A estratégia nacional conduziu diretamente a aumentos e incrementos na escala de atividades de tratamento e da prevenção na atenção básica em Portugal (Dependência, 2009).

Em estudos mais recentes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou o dado de que 40 mil toxicodependentes estariam em tratamento no momento do levantamento, estimando-se que o sistema já teria atendido a mais de 400 mil pessoas em catorze anos de existência (OMS, 2015).

Em termos estatísticos, o consumo não variou muito entre 2001 e 2015. O que mudou foram os seus efeitos colaterais, como a infecção pelo HIV e as mortes por overdose.

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Com relação a maconha, por exemplo, em decorrência da aprovação da lei de descriminalização em abril de 2001, a erva era consumida por 7,6% dos portugueses de 15 a 64 anos de idade; em 2007, passando para 11,7%; diminuindo para 9,4% em 2012 (Jornal El País, 2016).

Por outro lado, como dito por Goulão em discurso no Parlamento português, nem tudo mereceria ser festejado em decorrência da “complacência social” diante da maconha, que teve sua potencia aumentada ao longo dos anos e seria a causadora de aumentos no volume de pessoas sob estados de psicose aguda nos pronto-socorro do país.

No entanto, não se pode deixar de destacar também as vitórias portuguesas quando comparados os quadros de atualmente para com os quadros exibidos nos anos anteriores a 2001, quando parte ainda maior da população lidava com problemas relacionados as drogas.

No que concerne a criminalidade, por exemplo, o número de casos enviados a tribunais sob a caracterização de crimes por drogas diminuiu  de 14 mil casos no ano 2000, para 6 mil casos por ano, de acordo com dados divulgados em 2013 pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência.

Adicionalmente a esse dado, especialistas teriam sugerido que o tempo da polícia para focar em crimes de outra natureza teria relação com a não mais perseguição aos usuários de drogas, algo que diretamente teria feio com que os índices de crimes tivessem diminuído, como ocorreu em todos esses anos (Hughes e Stevens, 2010).

Por fim, destaca-se também a diminuição do número de mortes por consumo excessivo de drogas, que segundo dado constatado pelo Instituto da Droga e da Toxicodependência de Portugal, teria sofrido uma queda de 80 mortes em 2001, para um número reduzido de 12 mortes no ano de 2012.

Reflexões acerca da política de drogas em Portugal

Portugal teria entrado ao longo dos anos no seleto grupo de países abaixo da média de uso de drogas por pessoa da Europa.

O uso da droga decaiu entre os jovens portugueses de 15-24 anos de idade, considerados os mais propensos para tal (Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, 2011).

Os próprios portugueses sabem que ainda tem muito que ser feito com relação as drogas, mas também, por outro lado, já conheceram bastante da sensação de terem dado um primeiro passo bem feito, planejado e executado, acima de tudo.

A política de drogas portuguesa conquistou muitos méritos, diminuindo índices, ocorrências, e aumentando a infraestrutura e desenvolvimento sustentável da saúde e da atenção básica no país. Não atoa, países ao redor do mundo planejam segui-la.

No Brasil, temos uma realidade muito diferente da portuguesa, mas isso não deveria ser um entrave para que pudéssemos pensar nesse tipo de solução.

O planejamento se mostrou a base de tudo em Portugal e talvez devêssemos tirar alguns bons exemplos dessa realidade para a nossa própria.


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