A História da Saúde Mental: Do antigo ao contemporâneo

Engana-se quem pensa que a saúde mental data apenas do período que conhecemos como período contemporâneo/atual.

Desde muitos anos, antes mesmo de conhecermos a ciência que se desenvolveu sob o nome de psicologia, tem-se que diferentes sociedades já pensavam sobre isso, discutiam sobre essas questões, na medida em que observavam pessoas apresentando comportamentos distintos daqueles considerados “comuns”.

Várias coisas mudaram desde então, dentre elas a maneira de se olhar para estes em estado de sofrimento psicológico, a forma como se lidar com eles e como trata-los de acordo com suas necessidades, experiências, objetivos e pertencimento dentro da sociedade.

As nuances da saúde mental dentro da história do mundo e da humanidade foram muitas – suas mudanças – e são sobre estas raízes históricas que iremos conversar um pouco no texto da matéria de hoje.

PERÍODO NEOLÍTICO e MESOPOTÂMICO (8000 a.C. – 5000 a.C.)

Inicialmente, aquilo que se sabe a respeito da saúde mental dos nossos mais antigos antepassados seria que suas hipóteses sobre questões mentais estariam frequentemente caracterizadas como o resultado de crenças de que causas sobrenaturais como possessões demoníacas, maldições, feitiçaria e até mesmo deuses vingativos, estariam por trás dos incomuns sintomas.

Descobertas antropológicas datadas de 5000 a.C. mostraram evidências de que os humanos do período neolítico acreditavam que a abertura de um buraco no crânio permitiria que o espírito maligno (ou espíritos) que habitava a cabeça dos enfermos mentais fosse libertado, curando-os assim de suas aflições.

Notavelmente, o processo não era fatal. Como alguns crânios teriam mostrado sinais de recuperação, os pesquisadores acreditariam que esses indivíduos poderiam ter sobrevivido aos processos de “cura”, vivendo anos mais depois.

Apesar da técnica rude, a abertura duraria séculos, usada como tratamento para uma série de condições diferentes: fraturas de crânio, enxaquecas e enfermidades mentais.

Com o tempo, as ferramentas seriam gradativamente aprimoradas para serras de crânio e os exercícios, desenvolvidos com a finalidade exclusiva de “tratamento”.

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Quando a violência não era usada, os médicos-sacerdotes (como os da antiga Mesopotâmia) usavam rituais baseados em religião e superstição, pois acreditavam também que a possessão demoníaca era a razão por trás dos distúrbios mentais.

Tais rituais incluiriam orações, expiação, exorcismos, encantamentos e outras formas de expressões tribais da espiritualidade.

Os xamãs, por outro lado, recorreriam a ameaças e até punições caso os métodos ritualísticos não tivessem sucesso em mudar o comportamento de um membro da tribo, dado o reconhecimento social da efetividade de seus métodos.

EGÍPICIOS (3100 a.C. – 31 a.C.)

Foram os antigos egípcios que tiveram as ideias mais progressistas da época sobre como tratar as pessoas que entre eles aparentavam ter dificuldades envolvendo a saúde mental.

Os curandeiros do Nilo recomendavam que os pacientes se envolvessem em atividades recreativas, como a música, a dança ou a pintura, na tentativa de que se aliviassem seus sintomas, trabalhando para que houvesse alguma retomada de “normalidade” – algo estranhamente semelhante a algumas das vias de tratamento oferecidas nas instalações de tratamento mais recentes.

A antiga civilização egípcia também foi notavelmente avançada para o seu tempo nos campos da medicina, da cirurgia e do conhecimento da anatomia humana – algo que viria a calhar na preservação e mumificação de seus mortos.

Dois papiros, datados do século VI a.C., foram chamados de “os livros médicos mais antigos do mundo”, visto que estariam entre os primeiros documentos desse tipo a identificar, por exemplo, o cérebro como a fonte do funcionamento mental.

GREGOS (500 a.C. – 146 a.C.)

Uma crença padrão em muitas dessas culturas antigas, mas especialmente dentro da cultura grega, era a de que a dificuldade mental seria vista como algo de origem divina, geralmente como resultado de uma deusa ou deus raivoso.

Na tentativa de atribuir isso a uma causa compreensível, as pessoas daquelas civilizações acreditavam que uma vítima ou um grupo de pessoas havia, de alguma forma, transgredido contra sua divindade e estariam sendo punidas como consequência disso.

Teria sido necessária a influência dos primeiros filósofos europeus para levar adiante as ideias de “doença” e saúde mental em detrimento da hipótese dos deuses.

Em algum lugar entre o V e III séculos a.C. , o médico grego Hipócrates rejeitou a ideia de que a instabilidade mental era o resultado da ira sobrenatural.

Sobretudo, impressionantemente, ele teria escrito que os desequilíbrios no pensamento e no comportamento seriam elementos de “ocorrência natural do corpo”, em particular, vindos do cérebro.

IDADE MÉDIA (SÉCULO V – XV)

A crença grega de que os desequilíbrios mentais teriam sua origem como “ocorrências naturais do corpo” persistira durante mesmo o longo período da Idade Média.

Os médicos daquela época fariam uso de laxantes, eméticos (substâncias que induziriam vômitos) e sanguessugas na tentativa de restaurar as proporções de “equilíbrio do corpo” de seus pacientes.

Receitas que consistiam em aloés e heléboro negro, por exemplo, teriam a capacidade de curar um indivíduo em depressão.

O tabaco importado das Américas era usado para fazer com que os pacientes vomitassem os excessos do corpo.

Outros tratamentos fizeram com que os médicos extraíssem sangue da testa ou das veias das pessoas, na tentativa de drenar também os males interiores para longe do cérebro.

Normalmente, a família era responsável pela custódia e cuidado da pessoa em dificuldades, visto que intervenções externas e instalações para tratamento residencial eram raras na época.

Somente no final do século VI, em Bagdá, é que o primeiro hospital psiquiátrico seria fundado.

Na Europa, as famílias que possuíam a guarda de indivíduos apontados como portadores de alguma dificuldade mental eram vistas como fontes de vergonha e humilhação; muitas delas recorreriam a esconder seus entes em porões, às vezes prendendo-os, delegando-os aos cuidados dos empregados ou, simplesmente, abandonando-os, deixando-os nas ruas como mendigos.

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Nesse período, ter uma pessoa mentalmente considerada debilitada na família sugeriria um defeito hereditário e desqualificador na linhagem, de maneira a lançar dúvidas quanto à posição social e a viabilidade de toda a família, tamanho era o estigma.

A prisão perpétua não estava fora de questão. Durante a Idade Média na Europa, pessoas com dificuldades mentais poderiam ser sujeitas a punições físicas, geralmente espancamentos, como uma forma de represália por seu comportamento antissocial e indesejado. Algumas vezes, até como tentativa de literalmente expulsar seus males.

CASAS DE TRABALHO, CLERO E ASILOS PARA “DOENTES” MENTAIS (SÉCULO XVI – XVIII)

Ao fim do século XV e início do século XVI, outras opções de tratamento além das limitações do cuidado familiar (ou custódia) se fariam presentes, como as casas de trabalho – que nada mais seriam que paróquias vinculadas à igreja oferecendo alojamento, cuidados e alimentação básica aos mais pobres e mentalmente enfermos em troca de trabalho.

O clero nas respectivas igrejas desempenhou um papel fundamental no tratamento recebido pelas pessoas em dificuldades mentais da época, uma vez que práticas médicas eram consideradas como uma extrapolação lógica do dever dos sacerdotes, entendido que estes deveriam fazer o que pudessem para tratar dos males de seu povo.

Se uma família pudesse pagar por cuidados especiais, eles poderiam enviar a pessoa amada para uma casa particular, de propriedade e operada por membros do clero que se esforçariam para oferecer algum tratamento e conforto.

No entanto, as casas de trabalho e os mosteiros não conseguiriam acompanhar o alcance total da população que precisava de cuidados em saúde mental, o que abriria as portas para os asilos, que assumiriam o controle da maior parte destes casos com o passar dos anos.

Sabe-se que os asilos, mesmo o primeiro fundado em Valência (1406), não ofereciam nenhum tratamento ou conforto real aos necessitados, forçando seus então pacientes a viverem em condições desumanas, submetendo-os a abusos cruéis.

Essas instalações, na verdade, eram prisões exceto em seus nomes. Não havia o conceito de cuidar ativamente de indivíduos com dificuldades mentais, isolando-os apenas de suas famílias e da sociedade em geral, de forma a minimizar dentro da mentalidade da época aquilo que poderia ser percebido como risco de dano a comunidade.

Acreditava-se que a perturbação mental ainda era uma escolha, por isso os funcionários usavam restrições físicas, camisas de força e até mesmo ameaças para tentar “curar” os indivíduos. Às vezes, drogas eram dadas aos pacientes considerados mais “perigosos” e “difíceis”.

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Um exemplo disso foi o caso do médico holandês que chegou a desenvolver uma “cadeira giratória” que deveria literalmente sacudir a anatomia e o sangue do corpo para tentar restaurar seu equilíbrio – técnica que nunca conseguiu apresentar qualquer melhora real e significativa nas pessoas.

Quando a notícia se espalhou sobre os ambientes subumanos dentro dos asilos, um apelo por reformas surgiria na Europa na última parte do século XIX.

Um reflexo do movimento ocorreria em um asilo na cidade de Devon, na Inglaterra, que abandonou os métodos de tratamento baseados na contenção e agressividade para com as pessoas.

AS RAÍZES DA REFORMA E OS NOVOS TRATAMENTOS (SÉCULO XIX)

Apesar do exemplo inglês, o movimento de reforma começaria mesmo em Paris, no ano de 1792, sob os estudos do Dr. Philippe Pinel, desenvolvedor da tese de que pessoas psicologicamente enfermas precisariam de cuidados gentis para melhorar suas condições de saúde mental ao contrário da recorrente violência.

Ele ordenaria que as instalações sob seus comandos fossem limpas, que os pacientes fossem desencadeados e colocados em quartos com luz solar, autorizados a se exercitarem livremente dentro do hospital e que sua qualidade de cuidado fosse melhorada.

O tratamento moral evitava os tratamentos médicos tradicionais comumente encontrados nos manicômios, como a sangria terapêutica e as restrições físicas, e em vez disso, concentrava-se em tornar os manicômios mais parecidos com um “lar estrito e bem administrado”.

Ao invés de serem enjaulados e escondidos em porões, pensava-se em encoraja-los a considerar as consequências de seus comportamentos e a participar da manutenção da instalação.

Lá dentro, as pessoas estariam sujeitas a regras e a vigilância; receberiam recompensas e punições simples, de acordo com o definido como apropriado.

No entanto, os críticos – principalmente os norte americanos – argumentavam que o método não tratava realmente os pacientes, na medida em que os tornava dependentes de seus médicos para ter conforto.

No século XX, historiadores e médicos contemporâneos argumentariam que o método moral simplesmente não era funcional como parecia ser.

Após este período, a conversa sobre tratamentos e saúde mental estava pronta para dar um grande passo adiante. Surgia a figura de Sigmund Freud.

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Sua teoria, baseando-se no diálogo e na livre associação dos elementos surgidos, encorajava seus pacientes a falarem sobre o que quer que aparecesse em suas mentes, analisando através de seus estudos as atividade psicológicas destas pessoas.

A teoria de Freud era de que as vias de conversa, os sonhos, abririam uma porta para a mente inconsciente do paciente, concedendo acesso a qualquer tipo de pensamentos e sentimentos reprimidos que poderiam ter forçado ou tido influência em sua instabilidade mental.

Mesmo com as críticas históricas aos seus métodos, ainda podemos ver a influência da teoria freudiana na psicologia, na psicanálise contemporânea e em muitos dos tratamentos ainda hoje desenvolvidos.

SAÚDE MENTAL NO MUNDO CONTEMPORÂNEO – (SÉCULO XX E XXI)

Dentre as abordagens e métodos surgidos nos séculos XX e XXI, observar a ascensão e queda de alguns deles não é tarefa difícil, sendo pouco efetivos e bastante invasivos, como a terapia eletroconvulsiva, a psicocirurgia e alguns tipos de psicofármacos.

Esse panorama muda no fim da década de 90, quando seria introduzido pela primeira vez nos tratamentos psicofarmacológicos o componente fármaco conhecido como lítio.

Naquela altura, o lítio se mostraria bastante eficiente no controle dos sintomas das psicoses em geral, apresentando resultados diferentes em comparação com qualquer outro método que já tivesse sido tentado.

Foi o primeiro sinal de ascensão da psicofarmacologia moderna, consolidando-se algum tempo depois, de fato, como um dos tratamentos/abordagem em saúde mental mais utilizados do mundo.

Medicações como a clorpromazina, a sertralina, o diazepam e a fluoxetina ganhariam espaço como nomes conhecidos das décadas intermediárias e posteriores ao fim do século XX, sendo prescritas para transtornos de diferentes naturezas.

A reforma psiquiátrica

Iniciada na cidade italiana de Trieste, logo na segunda metade do século XX, a reforma psiquiátrica tornou-se um marco para a psicologia ao redor do mundo, principalmente por seus princípios e ideais.

O movimento, que tinha como objetivo principal dar fim ao modelo manicomial substituindo-o por outro que tivesse como princípio o cuidado para com a experiência do usuário ao coloca-lo como protagonista de todo o processo, marcaria um período.

De forma ainda mais contundente que qualquer outro movimento dessa natureza, a reforma revolucionaria o sistema de saúde mental mundial, abrindo margem para novas abordagens terapêuticas, formas de se lidar com as pessoas e até mesmo profissões.

Baseando-se na ideia de se ter o indivíduo como peça chave de todo tratamento em detrimento do que acontecia anteriormente, quando se pensava somente nas causas do seu sofrimento deixando suas vivências e experiências a margem, a reforma alteraria toda uma lógica arcaica e invasiva de se lidar com as dificuldades do usuário.

No Brasil, o SUS e seus programas de saúde mental seriam desenvolvidos tendo como base seus preceitos. Nise da Silveira, a histórica referência brasileira e mundial no que concerne a área, seria sua maior expoente.

A reconhecida metodologia finlandesa do Open Dialogue e a inovadora experiência holandesa do Enik College, por exemplo, surgiriam do movimento de reforma.

A psicologia e suas ramificações nunca mais seriam as mesmas após a derrubada dos manicômios e a instauração dos novos preceitos da reforma no mundo todo. Sua importância para a história se faz viva em cada usuário, em cada quebra de estigma e nova abordagem a ser desenvolvida.

Observações Finais

Atualmente, apesar da prevalência dos ainda altos índices de prescrição de medicações psicofarmacológicas, vemos um novo processo de renovação nos tratamentos da saúde mental acontecendo.

Seja por meio da retomada de práticas antigas como a meditação e a yoga, até pelo uso de novas formas de terapia focadas no indivíduo, da música e da arte, cada vez mais nos aproximamos de abordagens melhores, mais saudáveis e que buscam, genuinamente, a autonomia e o bem-estar dos indivíduos.

Quando encantamentos e cirurgias cerebrais ficaram aquém do esperado, a terapia, o autoconhecimento e as novas abordagens terapêuticas pegaram o bastão de tratamento para o século XXI, ajudando milhares de pessoas a conquistarem sua recuperação e saúde mental de volta.

A evolução e os avanços nessa área sugerem que as melhorias de hoje são infinitamente melhores que as melhorias de ontem e que, sendo assim, deveríamos pelo menos nos orgulharmos disso.


Referência Bibliográfica – Foerschner, 2010

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7 Comentários


  1. Muito bom. Algo que vai nos conscientizando as crenças negativas relativas a saúde mental.

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  2. olá, amei o conteúdo, gostaria de referenciar em meu trabalho, porem as informações não estão claras. Qual o nome do autor e obra cuja informações você encontrou : Foesrchner ?

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  3. Bom dia meu nome é JARSON falo de Moçambique na cidade de Nampula, venho ou por este parabenizar pelas publicações e master o meu interesse em receber mais informações.

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  4. Bom dia meu nome é JARSON falo de Moçambique venho manifestar o meu interesse em receber informações sobre a matéria de saúde mental

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