A família também merece cuidado na saúde mental

Redes de apoio

Podemos afirmar que em 1988 o Brasil sofreu uma grande transformação social com a promulgação da Constituição. Conhecida também como Constituição Cidadã, ela foi o texto-base para a reformulação do Estado Social Democrático Brasileiro, que garantiu uma série de direitos e deveres para a população.

Pela primeira vez, o Estado Brasileiro se responsabilizou em garantir à população o acesso a uma saúde pública, que garantisse a todos medidas de prevenção, promoção e recuperação da saúde.

A partir desse período, várias iniciativas institucionais legais e comunitárias foram criando condições para a viabilização do direito à saúde de acordo com a Lei 8.080/90 – “Lei Orgânica da Saúde”, promulgada pelo Ministério da Saúde, que passou a regulamentar os tratamentos pelo Sistema Único de Saúde (Rosa e Labate, 2005).

Segundo essa Lei, a saúde não seria somente a ausência de doenças, mas sim determinada por uma série de fatores básicos para a sobrevivência cotidiana, tais como: alimentação, moradia, saneamento básico, acesso ao trabalho, educação, lazer etc.

A partir dessa idealização, o Ministério da Saúde passa então a fomentar um modelo institucional baseado no reconhecimento da saúde como um direito de cidadania, expresso na melhora das condições de vida das pessoas e de suas famílias, sempre por meio de serviços pautados por práticas humanizadoras.

Assim, após muita luta, as instituições tradicionais de saúde tiveram que abandonar as práticas manicomiais para adaptarem-se a um novo conceito de saúde que considerasse e respeitasse a formação cultural do indivíduo, não limitando-o a um diagnóstico.

Para alcançar isso, as redes de apoio tiveram demasiada importância para a promoção da saúde, pois o apoio social é fundamental para que o indivíduo possa criar relações afetivas na vida, que possam influenciar de forma significativa a definição da personalidade e o desenvolvimento interpessoal.

A qualidade dessas interações em diferentes contextos sociais têm sido objeto de estudos de muitos pesquisadores, que comprovam o impacto positivo ou negativo sobre a saúde física e emocional das pessoas, a depender da exposição sofrida (BRITO; KOLLER, 1999; CYRULNIK, 2004; YUNES; GARCIA; ALBUQUERQUE, 2007).

É nesse contexto, por exemplo, que se dá o surgimento do Programa Saúde da Família (PSF), com propostas de mudar toda a antiga concepção de atuação dos profissionais de saúde, saindo da medicina curativa e passando a atuar na integralidade da assistência, tratando o indivíduo como sujeito dentro da sua comunidade socioeconômica cultural (Lecovitz e Garrido, 1996 apud Rosa e Labate, 2005).

Dessa forma, o indivíduo passa a ser considerado não apenas pela sua formação biológica, como também é considerado pela sua formação sociocultural.

Assim, para a promoção da saúde mental, entender os possíveis desequilíbrios existentes na relação familiar, por exemplo, é tão importante quanto entender os possíveis desequilíbrios hormonais do indivíduo.

Portanto, a família é uma importante rede de apoio que merece a devida atenção para gerar a saúde mental não só para o indivíduo que vivência a crise, como também para a comunidade ao seu redor.

Importância da família

Dentro dessa transposição, a família e a comunidade tornam-se elementos vitais para o recovery, sendo responsabilidade dos serviços de saúde o suporte para a compreensão e enfrentamento dos problemas, não só individuais como também familiares, para fortalecer os vínculos entre os usuários, familiares e os serviços profissionais, de maneira a promover uma posição em que cada um possa protagonizar de forma autônoma o processo de cuidado.

Nesse sentido, reconhecer a família como unidade passível de sofrimento e legitimar sua voz torna-se essencial para que os serviços desenvolvam ações terapêuticas capazes de transformar a relação de tutela em uma relação que estimule a autonomia e uma maior participação social. (ANASTÁCIO; FURTADO, 2012; BASAGLIA, 1991; BIELEMANN  et al., 2009; KEUSEN, 1998).

Em uma pesquisa feita pelo Programa Entrelaços, um programa de psicoeducação de família e suporte de pares desenvolvido pelo Setor de Terapia de Família do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB) desde 2011, foram acolhidos 9 (nove) participantes, todos com o diagnóstico de esquizofrenia, para um ciclo de cuidado composto por 18 meses, dividido da seguinte maneira:

(a) 3 meses de produção de conhecimento e reflexões construtivas para mudanças  de atitudes, em formato de seminários;

(b) 9 meses de terapia em grupo multifamiliar;

(c) 6 meses de preparação para que o grupo se torne autônomo na comunidade, incluindo a escolha dos coordenadores, a identidade do grupo e o local de reunião;

(d) grupos de ajuda mútuos independentes, conduzidos pelos próprios pares, em diferentes bairros do Rio de Janeiro, de caráter contínuo.

Dos nove participantes do estudo, todos tiveram melhora significativa na escala GAF após a participação no Programa Entrelaços, com evolução da média de 50,1111,67 para uma média de 78,88 9,61, o que corresponde ao progresso de um prejuízo funcional moderado a grave para um nível de funcionamento satisfatório a bom (p<,000), atestando a importância que inserir a família no cuidado teve para o cuidado da saúde mental desses usuários.

Como inserir a família na rede de apoio

Surge, portanto, a necessidade de repensar as práticas para o cuidado da saúde mental no sentido de dar voz às famílias e aos usuários, incorporando os diferentes olhares sobre a crise, para que os serviços se orientem para as necessidades dos sujeitos inseridos em um contexto sociocultural, respeitando as diferenças e compartilhando as responsabilidades de maneira horizontal e colaborativa, de forma que estimulem a ação dos usuários individual e coletivamente, como processos de ajuda mútua para a formação de novas práticas em saúde mental (CARVALHO; GASTALDO, 2008).

Porém, a hierarquização dos serviços, a manutenção de valores hegemônicos, a cultura ainda presente da tutela da loucura, a centralidade da medicalização, a falta de ações intersetoriais, a necessidade de intensificar o empoderamento dos usuários e de seus familiares e o despreparo dos serviços para fomentar a transformação social são alguns dos obstáculos que ainda precisam ser superados para a efetivação de novas práticas em saúde mental (BARBOSA; CAPONI; VERDI, 2018; BONGIOVANNI; SILVA, 2019; DE ALMEIDA; DIMENSTEIN; SEVERO, 2010; DIMENSTEIN et al., 2010; FIGUEIRÓ; DIMENSTEIN, 2010; MARTÍNEZ-HERNÁEZ, 2012).

Assim, surge a necessidade de pensarmos em maneiras de inserir a família como uma rede de apoio comunitária para as estratégias de cuidado.

Considerando que em uma grande escala a saúde mental ainda é associada a um tratamento manicomial, o preconceito frente ao tratamento de questões mentais pode se tornar um empecilho para agregar famílias dentro das instituições.

Dessa forma, o primeiro passo que podemos tomar para romper com esse estigma é mudar o senso comum da saúde mental manicomial para a saúde mental colaborativa, na qual todos os indivíduos que fazem parte do sistema têm suas experiências ouvidas e respeitadas.

Assim, com mais pessoas compondo a rede de apoio da saúde mental, novas oportunidades de resolução para os problemas surgirão para os indivíduos e familiares.

Cultivando a resiliência

As relações entre pessoas e ambientes oferecem possibilidades de apoio nos momentos de crise ou mudança, e podem criar oportunidades de desenvolvimento através da qualidade dos meios de subsistência.

O apoio social e afetivo fornecido pela rede relacional das pessoas é mantido por laços afetivos e depende de percepções que se tem do próprio mundo social e de competências para a proteção (BRITO; KOLLER, 1999).

No caso do núcleo familiar, é sabido que toda e qualquer família pode ser afetada de alguma maneira por crises e eventos estressores.

Alguns destes eventos são denominados por Kreppner (2000) como normativos, previsíveis e advindos dos ciclos da vida familiar (nascimento do primeiro filho, filhos pequenos, filhos adolescentes, a saída dos filhos de casa, aposentadoria, velhice, dentre outros…)

e outros são considerados não-normativos ou imprevisíveis (falecimento de algum membro, divórcio, doença, desemprego, etc…).

Segundo Walsh (1998, 2005), o que distingue uma família de outra, não é ausência de problemas ou de casos estressores normativos ou não-normativos, e sim a maneira como ela enfrenta estas dificuldades e a sua competência para resolvê-las.

Nesse sentido, as crises podem estimular o sistema familiar a desenvolver habilidades e recursos diversos. Nas concepções desta autora, os piores tempos podem ser os melhores, o que significa que se aprende através das adversidades e que todos os seres humanos podem crescer existencialmente com as crises e conflitos ao longo da vida, caso existam condições básicas e suficientes para tal (emocional, social e física).

A crise carrega em uma de suas faces, a oportunidade da mudança, que motiva pessoas, grupos e comunidades a buscarem soluções viáveis, sustentáveis e geradoras de empoderamento entre indivíduos e comunidades.

Assim, há de se pensar nas possibilidades de promoção de resiliência individual e comunitária que podem ser geradoras de transformação social a partir da implementação de redes de apoio amplas.

É possível identificar famílias e comunidades que desenvolvem condições de proteção eficazes para superar as adversidades. Para tanto, é preciso uma mudança paradigmática para focar as possibilidades dos indivíduos e dos grupos superarem as experiências traumáticas para notabilizar o potencial de saúde, ao invés de focar apenas nas impossibilidades e nos aspectos negativos da crise, como doenças, sintomas e carências.

Segundo Pesce, Assis, Avanci, Santos, Malaquias e Carvalhaes (2005, p. 436), pode-se compreender resiliência como “o conjunto de processos sociais e intrapsíquicos que possibilitam o desenvolvimento de uma vida sadia, mesmo vivendo em um ambiente não sadio”.

Novamente fica perceptível o enfoque relacional nos processos que resultam da combinação entre os atributos da pessoa ou grupos com o seu ambiente familiar, social e cultural.

Deste modo, a resiliência não pode ser pensada como um atributo que nasce com o sujeito, nem meramente é adquirido durante seu desenvolvimento, pois refere-se a processos interativos entre a pessoa e seu meio social em resposta ao risco, sendo que os mesmos fatores causadores de estresse podem ser experienciados de formas diferentes por pessoas diferentes.

Assim, a resiliência não é um atributo fixo do indivíduo, e sim uma competência do grupo social. (RUTTER, 1987; YUNES, 2001; JUNQUEIRA; DELANDES, 2003; PESCE; ASSIS; SANTOS; OLIVEIRA, 2004; YUNES, 2003).

A literatura vem apontando que o diálogo e a troca de experiências possibilitam expressões de resiliência e promovem a construção conjunta de soluções e empoderamento dos grupos sociais.

O fato é que, se houver contribuição e colaboração de inúmeras famílias no sistema de saúde, a resiliência de uma experiência familiar pode suprir a falta de resiliência de uma outra, fazendo com que a comunidade, por intermédio dos profissionais, autopromova a saúde coletiva.

Portanto, a família também merece cuidado na saúde mental e pensar em novas estratégias e práticas para inseri-la na rede de apoio será um importante avanço para a promoção da saúde pública brasileira.

Referências

– Leonardo, Figueiredo & Leão, Olga & Carim, Elias & Barreto, Silvana & Ribeiro, Cassia & Keusen, Alexandre & Tavares, Maria – O PAPEL DO SUPORTE DE PARES NO PROCESSO DE RECOVERY: A EXPERIÊNCIA DO PROGRAMA ENTRELAÇOS – Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, ISSN 2595-2420, Florianópolis, v.13, n.36, p.117-142, 2021.

– Maria Cristina Carvalho Juliano & Maria Angela Mattar Yunes – REFLEXÕES SOBRE AREDE DE APOIO SOCIAL COMO MECANISMO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DE RESILIÊNCIA – Ambient. Soc. 17 (3) • Set 2014 https://doi.org/10.1590/S1414-753X2014000300009

– BRITO, R. C.; KOLLER, S. H – DESENVOLVIMENTO HUMANO E REDES DE APOIO SOCIAL E AFETIVO. In:CARVALHO, Alysson Massote (org.). O mundo social da criança: natureza e cultura em ação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

– CYRULNIK, Boris et al – EL REALISMO DE LA ESPERANZA: TESTIMONIOS DE EXPERIENCIAS PROFESIONALES EN TORNO A LA RESILIÊNCIA.  Barcelona: Gedisa, 2004.

– YUNES, M. A. M.; GARCIA, N. M.; ALBUQUERQUE, B. de M. MONOPARENTALIDADE, POBREZA E RESILIÊNCIA: ENTRE AS CRENÇAS DOS PROFISSIONAIS E AS POSSIBILIDADES DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 20, n. 3, p. 444-453, 2007

– ANASTÁCIO, Camilia Cardoso; FURTADO, Juarez Pereira – REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL E RECOVERY: CONCEITOS E INFLUÊNCIAS NOS SERVIÇOS OFERECIDOS PELO SISTEMA DE SAÚDE MENTAL. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, v. 4, n. 9, p. 72-83, 2012.

– BASAGLIA, F – A INSTITUIÇÃO NEGADA: RELATO DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO – Rio de Janeiro: Graal, 326 p. 1991.

– FIGUEIRÓ, Rafael de Albuquerque; DIMENSTEIN, Magda. O COTIDIANO DE USUÁRIOS DE CAPS: EMPODERAMENTO OU CAPTURA? – Fractal : Revista de Psicologia, v. 22, n. 2, p. 431–446, Aug. 2010.

– CARVALHO, Sérgio Resende; GASTALDO, Denise. PROMOÇÃO À SAÚDE E EMPODERAMENTO: UMA REFLEXÃO A PARTIR DAS PERSPECTIVAS CRITICO SOCIAL PÓS-ESTRUTURALISTA – Ciência & Saúde Coletiva, v. 13, supl. 2, p. 2029-2040, Dec. 2008.

– WALSH, F. (1996) – THE CONCEPT OF FAMILY RESILIENCE: CRISIS AND CHALLENGE – Family Process, v. 35, p. 261-281, 1996.

– PESCE, Renata P.; ASSIS, Simone Gonçalves de; SANTOS, Nilton; OLIVEIRA, Raquel de V. Carvalhaes. RISCO E PROTEÇÃO: EM BUSCA DE UM EQUILÍBRIO PROMOTOR DE RESILIÊNCIA. Psicologia: Teoria e pesquisa, Brasília, v. 20, n. 2, p. 135-143, Mai/Ago, 2004.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 comentário


  1. Uma questão muito relevante dentro do contexto saúde mental, é dos desafios e avanços que estamos conquistando diante desse olhar, perante a família, que sem dúvida precisa desse espaço de acolhimento.

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