Saúde Mental da População LGBTQIA+: lutando contra estigmas e preconceitos

Nos anos 90, a sigla GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) denominava apenas parte da diversidade das sexualidades, não contemplando as identidades de gênero, o que reforçava a invisibilidade das pessoas bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros.

Além das pessoas que se identificavam com o gênero Queer (pessoas que não se identificam com padrões binários de gênero), Interssexuais ou Intersex (pessoas que apresentam genitálias e aparelhos sexuais ou reprodutivos que dizem respeito a uma nomenclatura binária) e Assexuados (pessoas que não se sentem nunca aptas, capazes ou com vontade de performar sua sexualidade), entre outros.

Nos últimos anos, a mudança para a sigla LGBTQIA+ se fez essencial e muito importante, não só para o enriquecimento da discussão de que o corpo físico não define nem o gênero e nem a sexualidade do indivíduo, mas, principalmente, reforça a importância da palavra inclusão.

Esse assunto ainda causa estranhamento, preconceitos e estigmas, além da dificuldade de discussão, pois são ainda poucos os espaços eficientes para esse debate.

Brasil e a LGBTQIA+Fobia

Após esses esclarecimentos, é importante que comecemos essa discussão lembrando que o Brasil é um dos países do mundo onde mais se matam pessoas da população LGBTQIA+, principalmente indivíduos transgêneros (Mendes & Silva, 2020).

De acordo com o último Relatório de Assassinatos de pessoas LGBT no Brasil (2019), do Grupo Gay da Bahia (GGB), nosso país registrou 141 mortes de pessoas LGBT de janeiro a 15 de maio de 2019. Ainda de acordo a entidade, foram 126 homicídios e 15 suicídios, o que representa a média de uma morte a cada 20 horas.

Apesar destes números representarem uma queda de 8% em comparação ao mesmo período de 2018, quando foram registradas 153 mortes (111 homicídios e 42 suicídios), houve um aumento de 14% do número de homicídios, de 111 para 126.

Ainda de acordo com o Relatório, os estados com mais mortes em números absolutos foram São Paulo (22), Bahia (14), Pará (11) e Rio de Janeiro (9).

Importante ressaltar que o levantamento do GGB é feito com base em notícias publicadas em veículos de comunicação, informações de parentes das vítimas e registros policiais.

Devido à falta de um melhor monitoramento e de informações estatísticas governamentais, o Relatório aponta para uma possível subnotificação de 5% a 10%, o que demonstra a gravidade da situação vivida por essa população.

Para Mendes & Silva (2020), importante salientar que existem poucas informações acerca dos autores desses homicídios contra a população LGBTQIA+, muito devido a subnotificação desses crimes, e devido a “ineficiência do sistema penal brasileiro, gerando o não enfrentamento da homofobia”, além da lesbo e transfobias.

Os autores apontam que só a criminalização da “homolesbotransfobia” não seria suficiente para combater esse tipo de violência, porém com a aprovação da ADO 26 (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão), enquadrada nos termos da Lei 7.716 de 1989, “já é um começo na busca da diminuição dos casos de violência contra essa população.

Estigma, discriminação e o impacto na saúde mental da população LGBTQIA+

A sociedade estabelece, segundo Goffman (2004), os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias.

Refere ainda que a estigmatização pode ser vista como uma forma de classificação social pela qual um grupo – ou indivíduo – identifica outro segundo certos atributos seletivamente reconhecidos pelo sujeito classificante como negativos ou desabonadores.

Além do crescimento da violência descrita anteriormente, o impacto do estigma e da discriminação sofridos por essa população, principalmente pelas pessoas trans, ainda é um outro grande problema que produz impactos na saúde mental.

De acordo com o documento do Ministério da Saúde sobre a Política Nacional de Saúde Integral de LGBT (2013), a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero incide no processo de sofrimento e adoecimento decorrente do preconceito e do estigma social.

Importante discutirmos como esse estigma é determinante de uma desigualdade social onde, de acordo com Parker (2012), “alguns grupos sociais são desvalorizados e outros valorizados de maneira discriminatória, vinculando o estigma às características culturais e aos sistemas de poder, definindo grupos e/ou indivíduos que passam a ser socialmente excluídos”.

A Política Nacional de Saúde Integral da População LGBTQIA+, através da Portaria n°2.836 de 1° de dezembro de 2011, foi instituída no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), com o intuito de promover a saúde integral dessa população, “eliminando a discriminação e o preconceito institucional, bem como contribuindo para a redução de desigualdades e a consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo”.

Infelizmente, no Brasil dos dias atuais, vivemos em um período de instabilidade política e social, onde algumas das poucas conquistas da população LGBTQIA+ vem sendo ameaçadas e descontruídas pela onda de conservadorismo radical (pleonasmo?), o que contribui e muito para o aumento de transtornos de ansiedade e depressão, bem como, em casos mais graves, o risco de suicídio, já mais comuns nesses indivíduos pela exclusão social e violência estrutural (Granados-Cosme e Delgado-Sánchez, 2008).

Para Guimarães (2018), afora a violência estrutural existente, esta se apresenta nos diferentes graus de poder sociopolítico, cultural e econômico, resultando em desigualdades “construídas com base no preconceito e no estigma”.

Além do sofrimento psíquico causado pelo estigma social, ainda há o enfrentamento da população LGBTQIA+ às diversas situações de constrangimento, agressões verbais e discriminação nos serviços onde vão buscar atendimento e cuidados à sua saúde.

Um exemplo, ainda bastante comum, ocorrido nos serviços de saúde é o constrangimento de pessoas trans que não são chamadas pelo seu nome social quando estão na sala de espera do atendimento.

Felizmente, desde 2007, a Carta dos Direitos dos Usuários do SUS, em seu terceiro princípio, “já assegurava o campo para preenchimento do nome social nos documentos de identificação do sistema de saúde (cartão do SUS), vetando o uso de formas desrespeitosas e preconceituosas no atendimento” (Brasil, 2007).

Porém, somente em abril em 2016, foi promulgado o Decreto nº 8.727 que torna obrigatório o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas trans no âmbito de todo e qualquer serviço público.

Esse exemplo demonstra que leis e decretos podem auxiliar na mudança de comportamento estigmatizante da sociedade como estratégias para o enfrentamento da discriminação nos serviços (principalmente os de saúde), além do “investimento em ações de educação e formação permanente dos profissionais”, como apontado por Guimarães (2018), bem como de toda a população.

O que não quer dizer que esse tipo de situação deixe de existir por completo, por isso, devemos apostar em mais ações educativas e informativas para a sociedade, objetivando uma maior visibilidade e representatividade da população LGBTQIA+ em todos os espaços e com a garantia da preservação de todos os seus direitos.

“Pra não dizer que não falei das flores”

A despeito dos retrocessos ocorridos nos últimos 3 anos nas políticas públicas e no aumento da violência contra a população LGBTQIA+, diversas experiências exitosas foram implementadas antes desses desmontes em vários estados brasileiros.

Baseado no “Relatório Nacional sobre Políticas LGBTI+: desigualdade regional e as políticas públicas”, lançado neste ano de 2020 e organizado pelo cientista político Dr. Artur Zimerman, da Universidade do ABC, a seguir reproduzo alguns exemplos (representando as cinco regiões brasileiras), de “legislação e ações pontuais na construção de políticas públicas” pensados para a população LGBTQIA+ e que contribuíram (e ainda contribuem) no enfrentamento das ainda existentes discriminações sofridas por essa população:

Rio de Janeiro
  • Criação em 1999 do serviço de Disque-Defesa Homossexual, no CERCONVIDH – Centro de Referência Contra Violência e Discriminação ao Homossexual;
  • Criação em 2007 do Programa “Rio Sem Homofobia”, com o intuito de combater a violência e a discriminação contra a população LGBTI++. A partir dele, foram instrumentalizados o Disque Cidadania LGBTI+, os Centros de Referência de Promoção da Cidadania LGBTI+, o Núcleo de Monitoramento Técnico de Crimes Homofóbicos, além de outros projetos;
  • Em 2010, foi firmada cooperação técnica entre a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do governo do estado (SEASDH-RJ) para apoiar a implantação dos Centros de Cidadania de Combate à Homofobia e Promoção da Cidadania LGBTI+ (CCLGBTI+);
  • Decreto nº 46.172 de 2017, que institui a carteira de identidade social para utilização por pessoas travestis e transexuais, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro.
Distrito Federal
  • A partir de 2006 foram criados os Centros de Referência LGBTI+, em todo o Brasil, como uma das ações do Programa Brasil Sem Homofobia (BSH) – primeiro documento governamental destinado exclusivamente à sistematização de ações e políticas destinadas ao público LGBTI+ no Brasil, criado em 2004;
  • Em 2016 é promulgado o Decreto nº 37.069 de 21/01/2016 – Criação da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual, ou contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência;
  • Lei nº 5835 de 11/04/2017 que discorre sobre os procedimentos para registro e divulgação de dados sobre a violência contra LGBTI+I no DF.
Rio Grande do Sul
  • Lei Estadual nº 11.872, do estado do Rio Grande do Sul de 19 de dezembro de 2002 que dispõe sobre a promoção e reconhecimento da liberdade de orientação, prática, manifestação, identidade, preferência sexual e combate à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero;
  • Em junho de 2012 é instituída a Carteira de Nome Social para Travestis e Transexuais no Estado do Rio Grande do Sul, para o exercício dos seus direitos, através do Decreto junho de 2011;
  • Criação da Portaria da Secretaria de Estado da Saúde n.º 343, de 09 de maio de 2014 que institui a Política Estadual de Atenção Integral à Saúde da População LGBTI+ no Rio Grande do Sul, estabelecendo diretrizes e objetivos para a consolidação de ações no âmbito estadual;
  • Inauguração, em 2017, do Ambulatório LGBT como parte da política municipal de Atenção Integral à Saúde da População LGBT na cidade de Canoas para ampliação dessa população aos serviços de saúde.
Pará
  • Em 21 de maio de 2009, o Governo Estadual legitimou o Decreto de nº 1.675 compelindo, assim, que todos os Órgãos da Administração Direta e Indireta respeitem o Nome Social de Travestis e Transexuais, independentemente do Registro Civil. Essa foi uma das primeiras leis nesse sentido e o Estado do Pará foi o primeiro que obteve esta conquista;
  • Fundação do Comitê Gestor de Combate a Homofobia ligado de forma direta ao Conselho Estadual de Segurança Pública – CONSEP, através da Resolução 155/2010. Este Comitê ganhou força no Estado, vem realizando atividades de sensibilização, ações de capacitação e reciclagem dos órgãos de Segurança Pública com o objetivo de combater a homofobia;
  • Em 2015, Universidade Federal do Pará (UFPA), por meio do Coletivo Universitário LGBT ACOPLA, conquista a aprovação da Resolução 731/2014 que dá direito aos indivíduos LGBTI+ ao uso do nome social dentro do ambiente acadêmico.
Bahia
  • Em 1980 é criado o Grupo Gay da Bahia (GGB), pioneiro na região Nordeste, iniciando discussões de temas preocupantes à época como: o preconceito contra homossexuais negros; a violência física contra população LGBT vivendo em situação de rua; os crimes Homofóbicos, entre outros;
  • Criação da Lei Municipal 5275/97, contra a “Discriminação Anti-Homossexual”, em Salvador no ano de 1997 e que instituía penalidade à prática de discriminação em razão da orientação sexual;
  • Em 2013 são criados o Conselho Estadual de Combate à Discriminação, bem como Conselho de Direitos da população LGBTI+.

Esses poucos exemplos são parte do enfrentamento ao estigma, preconceito e discriminação que a população LGBTQIA+ vivencia diariamente e que afetam, não só o acesso aos serviços de saúde, como outros espaços sociais, bem como contribuem para o sofrimento psíquico e, consequentemente, a diminuição da qualidade de sua saúde mental.

No Brasil, o acesso aos serviços de saúde públicos deve seguir os princípios do SUS, sistema criado democraticamente junto com nossa constituição em 1988: universalização (direito de cidadania de todas as pessoas e assegurado pelo Estado); integralidade (devemos considerar a pessoa como um todo para atender todas as suas necessidades) e equidade (cujo principal objetivo é diminuir as desigualdades).

Para Irineu & Froemming (2012), as violações desses direitos e também as discriminações “podem (e devem) ser combatidas através da educação e de políticas públicas que avancem nas discussões de democracia”. E nesta democracia, o respeito e o acolhimento à diversidade fazem parte do viver e conviver em sociedade.

Quando pessoas são discriminadas e estigmatizadas, seja por sua identidade de gênero, orientação sexual, etnia, religião ou por qualquer outro motivo, não é só o indivíduo que adoece (e sofre com esse adoecimento), mas toda uma sociedade adoece junto. Por isso, viva (e deixe viver) a diversidade!

Referências Bibliográficas

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