O que é a saúde mental segundo a OMS (WHO)?

Nos últimos tempos, os conceitos e as práticas de saúde mental sofreram mudanças para abraçar os direitos das pessoas em sofrimento psiquíco.

Durante o século XX foram feitas inúmeras denúncias no mundo inteiro acerca do cuidado violento adotado por instituições psiquiátricas.

Assim, depois de muitas lutas para alcançarmos a reforma no sistema psiquiátrico, governos e instituições não-governamentais reconheceram a necessidade de buscarmos práticas alternativas para o cuidado em saúde mental.

Dessa forma, a partir do século XXI, vários documentos foram emitidos para orientar novos cuidados que respeitem os direitos humanos dos usuários em saúde mental.

Nesse sentido, hoje nós trazemos um documento de extrema importância que vêm sendo utilizado no mundo inteiro para que alcancemos novas práticas em saúde mental que sejam boas para o indivíduo inserido dentro do contexto social.

Subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (WHO) é uma agência especializada em saúde que vêm lutando pela mudança do cenário mundial em saúde mental.

Assim, no dia 26 de Maio de 2021, a organização (WHO) publicou em seu site um documento normativo para promover abordagens em saúde mental centradas nos direitos humanos. Através da orientação principal do Guidance and technical packages on community mental health services podemos obter importantes informações sobre como desenvolver e transformar os sistemas e serviços de saúde mental para se alinhar aos padrões internacionais de direitos humanos.

Por isso, pela importância singular que o documento possui para a sociedade mundial, ao longo das próximas semanas nós iremos sintetizar os temas contidos no documento para que essas práticas, discussões e sistemas façam parte da nossa realidade nacional.

Para aqueles(as) que quiserem ler o documento na íntegra em inglês, o acesso ao material será disponibilizado no final do artigo.

O contexto global

Em 2013, na assembleia da organização mundial da saúde foi embasado o Plano de ação abrangente de saúde mental com duração de 7 anos.

Este plano de ação reconhece o papel essencial da saúde mental em alcançar a saúde para todas as pessoas e, em 2020 foi estendido até 2030 na septuagésima segunda Assembleia Mundial da Saúde.

Junto com o desenvolvimento sustentável, a agenda de saúde mental assume protagonismo nas políticas internacionais de desenvolvimento, com o objetivo de até o ano estabelecido, 2030, reduzir em pelo menos 1/3 reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis (DNTs) derivadas de transtornos psicológicos por meio da prevenção e promoção da saúde mental e bem-estar.

Como resultado, os governos do mundo inteiro vêm sendo pressionados pelas instituições (OMS/WHO) a adotarem estratégias para a execução do Plano em Saúde Mental, fazendo com que muitos desafios do século passado sejam superados pelos planos de ação do século XXI.

Porém, o cenário ainda está longe de alcançar plenitude; pois, de acordo com a OMS Mental Health Atlas 2017, globalmente, a média de gastos dos governos com saúde mental representa menos de 2% do total de investimentos com saúde, taxa ainda extremamente baixa frente às necessidades.

Embora muitos serviços de saúde mental em todo o mundo se esforcem para fornecer cuidados de qualidade e apoio útil para pessoas com vulnerabilidades em saúde mental, eles frequentemente o fazem no contexto de restrições substanciais em recursos humanos e financeiros, sendo que alocar recursos financeiros é uma pré-condição para que os serviços de saúde mental forneçam o suporte adequado para atender as necessidades da sociedade.

De qualquer forma, a promoção de saúde mental vai muito além do fornecimento financeiro às instituições.

Na verdade,  em muitos serviços em todo o mundo, as formas atuais de provisão de saúde mental são consideradas parte do problema, já que o fornecimentos de recursos são destinados à aplicação tradicional do atendimento em saúde mental, mantendo a exclusão social e a ampla gama de violão de direitos.

Assim, além do fornecimento de recursos para as instituições de saúde, é de fundamental importância o investimento adequado nas instituições de ensino para que os profissionais da saúde mental tenham uma formação capacitadora para a geração de saúde que os novos parâmetros da saúde mental exigem.

Abordagem do Recovery na saúde mental

Os instrumentos internacionais de direitos humanos estabelecem parâmetros para os países respeitarem, protegerem e cumprirem os direitos e liberdades fundamentais para todas as pessoas e, assim, fornecem uma base crítica para acabar com o status quo tradicional e assim promover ações que respeitem os direitos das pessoas com vulnerabilidades mentais.

Em 2008, entrou em vigor a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), o que sem dúvida marca a contribuição mais significativa para fazer avançar a agenda e garantir o pleno respeito pelos direitos das pessoas com vulnerabilidades na saúde mental.

Ressaltando a necessidade urgente de estabelecer proteções aos direitos humanos das pessoas com deficiência, a Convenção foi o instrumento de direitos humanos negociado com mais rapidez e um dos mais ratificados, até o momento, 181 Estados Partes concordaram em obedecer a suas disposições, que, em termos gerais, são:

  • abolir leis, políticas, regulamentos, costumes e práticas discriminatórias
  • adotar políticas, leis e outras medidas que concretizem os direitos reconhecidos na Convenção.

Nas últimas três décadas, o surgimento da abordagem do Recovery foi de fundamental importância para a promoção dos direitos humanos em saúde mental.

Essa abordagem, que teve suas raízes no ativismo de pessoas com experiência de vida dentro dos sistemas psiquiátricos, recebeu amplo apoio dos Estados Membros da OMS no Plano de Ação de Saúde Mental Abrangente da OMS.

Para muitas pessoas, recuperação significa recuperar o controle de sua identidade e vida, ter esperança para sua vida e viver uma vida que tenha significado para elas, seja por meio do trabalho, relacionamentos, espiritualidade, envolvimento comunitário ou alguns ou todos esses.

A abordagem do Recovery visa abordar toda a gama de determinantes sociais que afetam a saúde mental das pessoas, incluindo relacionamentos, educação, emprego, condições de vida, comunidade, espiritualidade, atividades artísticas e intelectuais, enfatizando a necessidade de colocar questões como conexão, significado e valores no centro da discussão sobre saúde para abordar holisticamente os aspectos que envolvem o cuidado.

Vale ressaltar que o significado da recuperação pode ser diferente para cada pessoa e, portanto, cada indivíduo pode se relacionar diferentemente com o método Recovery, sendo assim uma oportunidade do sujeito definir o que a recuperação significa para ele.

A abordagem de recuperação, dessa forma, incorpora uma mudança completa de paradigma na forma como muitos serviços de saúde mental são concebidos e administrados, sendo considerado um conceito revolucionário não só para a saúde mental, como também para a saúde pública.

Os Direitos Humanos em Saúde Mental

O objetivo de prestar melhores serviços às pessoas com vulnerabilidades mentais requer mudanças fundamentais na forma como os serviços conceituam e prestam cuidados.

O direito à saúde detalhado na CDPD exige que os governos proporcionem às pessoas com o acesso a serviços de saúde mental de qualidade que respeitem seus direitos e dignidade.

Isso significa operacionalizar uma abordagem centrada na pessoa, baseada no Recovery e nos direitos humanos, desenvolvendo e fornecendo serviços que as pessoas queiram usar, em vez de serem coagidas a fazê-lo.

Significa, também, estabelecer serviços que promovam a autonomia, estimulem a cura e criem uma relação de confiança entre quem presta e quem recebe o serviço, promovendo participação e inclusão.

A Convenção exige que os Estados acabem com todos os sistemas de tomada de decisão coerciva e substitua-os por sistemas assistências, para que assim as pessoas possam tomar suas próprias decisões formais e informais do dia a dia em igualdade de condições com as demais.

Em situações de crise ou de extrema vulnerabilidade o sistema de saúde deve adotar a postura assistêncial de fornecer o auxílio para que a pessoa tenha a condição de decidir o que fazer, e não impor algo pela legitimação profissional que o cargo oferece.

Embora desafiador, os países devem alinhar práticas que dão preferência às vontades individuais das pessoas, garantindo o seu consentimento para a promoção de cuidados que o profissional da saúde mental pretende alcançar.

Um método de tomada de decisão com suporte que pode ser implementado envolve a nomeação, pela pessoa em questão, de um companheiro ou companheira de confiança para fornecer suporte na ponderação de diferentes opções e decisões.

A pessoa ou grupo de confiança também pode ajudar a comunicar para a equipe profissional as decisões escolhidas e, se apesar dos esforços significativos não for possível determinar a vontade e preferência da pessoa, então é apresentada para o indivíduo ou responsável uma proposta de tomada de decisão pela equipe profissional.

Para a criação de serviços livres de coerção são necessárias ações em várias frentes, incluindo:

  1. educação aos servidores de saúde sobre relações de poder e hierarquização;
  2. reflexão sobre os danos prejudiciais das práticas coercivas;

iii. treinamento sistemático para todos os funcionários práticas alternativas de cuidado em situações de crise;

iv.. planejamento individualizado com as pessoas que usam o serviço, incluindo planos de crise e diretrizes antecipadas;

v. A modificação do ambiente físico e social da unidade de saúde para criar uma ambiente acolhedor;

Um papel crítico para os serviços de saúde mental é, portanto, apoiar as pessoas no acesso a organizações e atividades relevantes de sua escolha, que podem ajudá-las a viver e serem incluídas na comunidade.

Isso inclui, por exemplo, facilitar o acesso a serviços e benefícios de lazer, oportunidades educacionais, moradia e emprego, já que todos esses fatores são relevantes para o bem-estar da saúde mental.

Assim, os serviços orientados para a recuperação (consulte os módulos de treinamento QualityRights da OMS) geralmente se concentram nas cinco dimensões a seguir:

  • Conectividade: Este princípio significa que as pessoas precisam ser incluídas em sua comunidade em pé de igualdade com todas as outras pessoas.
  • Esperança e otimismo: afirmação de que viver uma vida plena na presença ou ausência de “sintomas” é possível.
  • Identidade: A abordagem de recuperação pode ajudar as pessoas a apreciarem quem são, fortalecer seu senso de auto-estima. Baseia-se no respeito pelas pessoas e por sua identidade única e capacidade de autodeterminação.
  • Significado e finalidade: Envolve respeito por formas de cura que podem ir além de intervenções biomédicas ou psicológicas.
  • Fortalecimento: O empoderamento tem estado no cerne da abordagem desde as suas origens e postula que o controle e a escolha são centrais para o bem-estar.

Conclusão

A implementação de uma abordagem baseada em direitos humanos e recuperação requer que os serviços abordem os determinantes sociais da saúde mental, respondendo às necessidades imediatas e de longo prazo das pessoas.

Isso inclui apoiar as pessoas a ganhar ou recuperar significado e propósito na vida e ajudá-las a explorar todas as áreas importantes para o desenvolvimento de bem-estar, incluindo relacionamentos, trabalho, família, educação, espiritualidade, atividades artísticas, intelectuais, política e assim por diante.

Nesse contexto, os serviços de saúde mental precisam respeitar a capacidade legal das pessoas, incluindo suas escolhas e decisões relativas ao tratamento e cuidados.

Eles precisam encontrar maneiras de apoiar as pessoas sem recorrer à coerção e garantir que pessoas com experiência vivida participem e forneçam percepções sobre como deve ser um bom serviço de atendimento assistencial.

Por fim, os serviços de saúde mental também devem se valer da perícia e da experiência de colegas trabalhadores para apoiar outras pessoas em sua jornada de Recovery de uma forma que atenda às suas necessidades, desejos e expectativas.

Existem muitos desafios para realizar esta abordagem dentro dos recursos, políticas e restrições legais que muitos serviços enfrentam.

No entanto, existem vários exemplos de serviços de saúde mental de diferentes regiões do mundo que mostram concretamente que isso pode ser feito.

Nas próximas semanas iremos apresentar alguns serviços de saúde que vêm fornecendo boas práticas em saúde mental à população, funcionando com sucesso em uma ampla gama de estruturas legais, ao mesmo tempo em que protegem os direitos humanos, evitam a coerção e promovem a capacidade legal dos indivíduos.

Então, acompanhe as publicações das próximas semanas para conhecer as instituições  que servem de inspiração para formuladores de políticas e prestadores de serviços no mundo inteiro! Não perca 😉

Referência:

– Guidance on community mental health services: promoting person-centred and rights-based approaches. Geneva: World Health Organization; 2021 (Guidance and technical packages on community mental health services: promoting person-centred and rights-based approaches). Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO

Relatório OMS.pdf

4 Comentários


  1. Fico feliz em saber que há pessoas engajadas em promover o bem estar de pessoas com saúde mental vulnerável. Sou farmacêutica e vejo no dia-a-dia a necessidade de cuidados bem elaborados para essas pessoas, no que diz respeito às suas peculiaridades. Sou mãe de esquizofrênico e vivo o desfio diário da promoção do bem estar dele e meu também. É imperativo hoje conseguir ajudar esses pacientes, pela falta de informação que abre um vácuo nas famílias e por causa de políticas mal resolvidas em nosso país. Parabéns a todos pela iniciativa. Me disponibilizo para ajudar no que for possível.

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário, Tânia.
      Apesar dos atrasos que ainda temos no cenário nacional da saúde mental, o nosso papel é fazer o possível para conscientizar a população para a necessidade de adotar novas práticas que sejam inclusivas, respeitosas e acolhedoras para os usuários do serviço.
      Você pode nos ajudar com a nossa missão compartilhando os nossos conteúdos nas redes sociais para que assim possamos incentivar essa discussão para o maior número de pessoas possíveis.
      Se estivermos juntos e ampliarmos o nosso diálogo, tenho certeza que faremos importantes avanços para a saúde mental nacional.
      Abraços!!!

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  2. A saúde Mental deve ser sempre presente nas capacitações dos profissionais que atuam na saúde como todo.

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    1. Sim, Emília. Você tem toda a razão!
      As novas práticas para a promoção de saúde mental são essencialmente coletivas, e precisamos da colaboração dos demais setores da saúde (e não só da saúde) para uma atuação eficiente na promoção de direitos aos usuários.
      Recentemente fizemos um post sobre “Transdisciplinaridade e clínica” que aprofunda melhor sobre essa questão.
      Vale a pena conferir 😉

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