Voltando um pouco no tempo, temos para a atenção básica a elaboração da Estratégia de Saúde da Família, que enquanto estratégia de reorientação do modelo assistencial à saúde, afastava-se do modelo biomédico e hospitalocêntrico para configurar-se como porta de entrada do sistema de saúde para uma amplitude muito maior de casos e contextos.
Para a saúde mental não seria diferente, visto que, com as mudanças conquistadas pelo movimento da reforma psiquiátrica, desde a década de 70, novos olhares seriam lançados à situação das pessoas em dificuldade psicológica e, com isso, uma nova necessidade surgiria: a de integrar saúde mental e atenção básica por meio de novas estratégias e abordagens em saúde.
É nesse contexto, de mudanças e de desenvolvimento da saúde, que surgem as estratégias de Apoio Matricial, ou de matriciamento; medidas tomadas pelo Ministério da Saúde para promover a articulação entre atenção básica, saúde mental e os aparelhos de auxílio integrados a ambas.
O matriciamento faz parte de avanços em políticas dos dois setores, ajudou a consolidar necessidades expressas pelas pautas da reforma psiquiátrica e, ao mesmo tempo, a auxiliar na formação de profissionais da saúde, na ampliação de suas capacidades de articulação, no trato ao próximo, dentre outras tantas mudanças positivas.
Vale a pena entender o que é e como funcionam as práticas de matriciamento na saúde brasileira..
Matriciamento: integrando atenção básica e saúde mental por meio de cuidados colaborativos
De maneira simples, o matriciamento pode ser definido como um modo de produzir saúde em que equipes complementam suas atividades, num processo de construção compartilhada, com o fim último de tratar das dificuldades de uma pessoa por meio de uma proposta de intervenção pedagógica e terapêutica conjunta.
Historicamente, a verticalidade dava o tom aos atendimentos em saúde e saúde mental, quando a lógica baseava-se na transferência de responsabilidade entre setores ou profissionais de diferentes áreas do cuidado. Não existia, até então, uma união em saúde que desse sentido ao tratamento como uma coisa única e inseparável.
Com o tempo, percebeu-se que os efeitos negativos dessa estrutura de atendimento poderiam ser atenuados por meio de ações horizontais, que integrassem os componentes, por exemplo, da saúde mental e da atenção básica, e seus saberes, em diferentes níveis de assistência, melhorando o apoio a pessoa passando por dificuldades.
Nesse sentido, o sistema de saúde reestrutura-se e, por meio das estratégias de matriciamento, surgem as “equipes de referência” e as “equipes de apoio matricial”, cada uma correspondendo a um setor diferente de cuidados em saúde, mas criadas para complementarem-se entre si.
Sendo assim, no Sistema Único de Saúde (SUS), as equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) passam a funcionar como equipes de referência interdisciplinares, proporcionando cuidados longitudinais, enquanto que, concomitantemente, as equipes de apoio matricial, proporcionando cuidados psicossociais, passam a funcionar como equipes de saúde mental.
Afim de ampliar os cuidados das equipes interdisciplinares que compõem as estratégias de saúde da atenção básica – e vice versa, na medida em que as equipes da saúde mental também se beneficiam com esse contato – o apoio matricial se constitui como um suporte técnico especializado.
Dividindo-se entre núcleos e campos, sendo um núcleo, um setor do saber e de prática profissional, e um campo, um espaço de limites indefinidos em que cada disciplina buscaria no trabalho de outras o apoio para cumprir suas tarefas práticas e teóricas, estrutura-se o matriciamento.
O matriciamento é, por natureza, estratégias e práticas multidisciplinares, envolvendo a troca de conhecimentos, tendo como meio a elaboração reflexiva de atividades e abordagens, dentro do contexto interdisciplinar. É um elemento capaz de ampliar a capacidade do atendimento e, consequentemente, das equipes de atenção básica e saúde mental.
Alguns instrumentos do processo de matriciamento
Para que as estratégias de matriciamento fossem colocadas em prática, alguns instrumentos foram criados visando facilitar esse processo e a consequente união entre os trabalhos realizados tanto no âmbito da atenção básica quanto no âmbito da saúde mental. Em forma de tópicos, falaremos um pouco a respeito delas.
Projeto Terapêutico Singular
Em união de esforços, as equipes ficam responsáveis por criar para cada pessoa em dificuldade psicológica um Projeto Terapêutico Singular (PTS), com o objetivo de estruturar o cuidado a ela através de metas, caminhos e adequações a serem feitas em relação a sua vida e rotina.
Ainda que o centro de um PTS seja o indivíduo, sua elaboração conta com a análise e valorização dos contextos familiares e territoriais de cada um. Torna-se muito importante nesses casos o conhecimento dos ambientes, da estrutura da família e dos lugares frequentados pelas pessoas para a construção plena do quadro.
São diversas as observações feitas, as ações tomadas em conjunto pelas equipes e suas reuniões, sejam somente de profissionais ou contando com a presença da pessoa e sua família, para o desempenho de um cuidado pleno e especializado em saúde e saúde mental.
Interconsulta
Como dito acima, a reunião entre especialistas faz parte do leque de atividades propostas pelas práticas de matriciamento e são de extrema importância para o desempenho de cuidados integrais em saúde e saúde mental.
A interconsulta é exatamente isso:
Um encontro de profissionais de distintas áreas, saberes e visões que permite que se construa uma compreensão integral do processo de saúde e doença, ampliando e estruturando a abordagem psicossocial e a construção de projetos terapêuticos, além de facilitar a troca de conhecimentos, sendo assim um instrumento potente de educação permanente (Ministério da Saúde, 2011).
São realizadas quando há a necessidade de serem discutidos casos, formas de intervenção, entre outras necessidades. São espaços de aprendizado e compartilhamento visando o desenvolvimento dos serviços e dos quadros de atendimento em andamento e a serem realizados.
Consulta Conjunta
A consulta conjunta acontece quando se faz necessária a resolução de dúvidas a respeito da assistência ou da própria situação da pessoa atendida. A demanda pode partir da pessoa ou mesmo de um familiar próximo.
Nesse contexto, reúnem-se profissionais membros das equipes de saúde, seja da família ou da saúde mental, para complementar ou elucidar aspectos desse cuidado prestado e outras questões. A consulta serve como um meio importante na criação de vínculos e confiança entre todas as partes.
Visita Domiciliar Conjunta
O recurso da visita domiciliar faz parte do arsenal terapêutico dos serviços de saúde de base territorial. Supõe-se que centros de atenção psicossocial e equipes de saúde da família competentes realizem, com regularidade, visitas domiciliares a usuários que, por diversas razões – em especial, dificuldade de deambulação ou recusa –, não podem ser atendidos nas unidades de saúde (Ministério da Saúde, 2011).
Genograma e Ecomapa
Dada a importância do estudo sobre o território e a origem familiar da pessoa a ser tratada, genograma e ecomapa são técnicas complementares que permitem o mapeamento da família, das relações e padrões familiares e do território no qual essas relações ocorrem.
Com esses recursos, os profissionais das equipes podem avaliar os recursos e necessidades de cada pessoa, família e região para que o melhor modelo de atendimento possa ser aplicado. São recursos fundamentais e permitem o olhar de um panorama repleto de características, positivas e negativas, da vida do indivíduo.
O matriciamento como organizador, potencializador e facilitador da rede assistencial
Historicamente, os serviços de saúde da atenção básica viviam um relacionamento bastante superficial com outros serviços de saúde, mais especializados, como os dos CAPS na saúde mental, por exemplo. Os atendimentos não tinham o respaldo que possuem hoje e eram apenas passados para frente.
Atualmente, de acordo com as estratégias de matriciamento, equipes diferentes trabalham unidas, pensando juntas projetos terapêuticos, num apoio que gera novas possibilidades e funções, além de permitir a reunião de seus conhecimentos a respeito dos diferentes casos que surgem nesses ambientes.
Dessa forma, a equipe da ESF revela seu conhecimento sobre os hábitos do indivíduo, sua família, sua comunidade, sua rede de apoio social e/ou pessoal. E a equipe de matriciadores, por outro lado, traz seus conhecimentos sobre a saúde mental e a repercussão desse setor na vida dessa pessoa (Ministério da Saúde, 2011).
Essa rede de saberes, seguindo essa relação que se cria, gera a primeira possibilidade de rede que vincula, que corresponsabiliza e que permite a estruturação de atendimentos integrais àqueles que necessitam, baseando-se em um novo modelo de cuidados.
São, por exemplo, atendimentos realizados dentro dos princípios de uma nova abordagem centrada na pessoa, fazendo dos espaços de conversa entre ela e seu(s) especialista(s), espaços de manifestação e participação, em que conversas sobre a vida e suas dificuldades, assim como sobre realizações, alegrias e outras temáticas, são incentivadas e permitidas.
Os relacionamentos, seguindo a lista de exemplos, tendo como meio os serviços prestados, passam a ser relacionamentos criadores de consciência mútua, em que o incentivo ao autocuidado, ao resgate da autoestima e a busca pelo exercício da cidadania, começam a estar presentes ao mesmo tempo em que ajudam no rompimento de preconceitos e estigmas.
Dentro da nova lógica de acolhimento, como mais um exemplo, que prioriza a segurança e a liberdade de exposição das dificuldades, dúvidas e angústias vividas por quem busca o atendimento, inicia-se um processo de educação compartilhada não existente antes, entre a pessoa, o profissional e seus familiares, que passam a aprender entre si por meio do contato frequente.
E o acompanhamento, que surge como forma de organizar o atendimento e de possibilitar com que o profissional esteja junto ao indivíduo durante o processo de tratamento e recuperação, acaba por entrar nessa lista como promotor de algo pouco presente no modelo de cuidados do passado, algo tão importante como o interesse real pela situação e vida da pessoa.
Sendo assim, nesse sentido, o matriciamento passa a permitir, se não a criação dessas ações (e sentimentos), seu desenvolvimento, de forma a abarcar um número maior de pessoas e de conceder tratamentos mais amplos, estruturados, integrais e eficientes. As mudanças feitas afetam a vida de milhares de pessoas e ajudam na recuperação da maioria delas nos dias de hoje.
Intervenções de saúde mental na atenção básica
Em conjunto com o desenvolvimento das equipes, de seus relacionamentos e de suas ferramentas de trabalho comuns, também desenvolveram-se tipos diretos de intervenções da saúde mental na atenção básica em forma de atividades e afins que valem a pena ser destacadas.
A seguir listamos algumas delas a fim de conhecimento:
- Grupos de atenção à saúde (e saúde mental)
- Educação permanente em saúde e transtornos mentais (voltada para especialistas e profissionais)
- Intervenções terapêuticas na atenção básica
- Intervenções baseadas em atividades
- Uso de psicofármacos nas clínicas da atenção primária
- Abordagem familiar
Os desafios da prática do matriciamento
Mesmo com a expansão da saúde mental como um elemento a ser observado mais de perto pela saúde em geral e sua aproximação com a atenção básica como forma, também, de inclusão social, estigmas e preconceitos ainda existem acerca de transtornos e dificuldades mentais e a necessidade de conversa-las enquanto desafios tornou-se ainda mais evidente nesse contexto.
Infelizmente, ainda são comuns reações adversas em relação a pessoas com transtornos mentais, como as de medo e receio, que acabam resultando em comportamentos de evitação e fazem diminuir as possibilidades de iniciativas de ajuda.
As situações de preconceito contra si mesmo também existem, e se alimentam desses comportamentos externos, criando uma outra situação de preocupação e debilidade.
Além das pessoas buscando apoio e de outros em seu contexto social, alguns dos próprios profissionais da rede acabam reproduzindo também alguns desses comportamentos, e são nesses momentos em que se observa a necessidade de estratégias de matriciamento para ambientes e certas mentalidades compartilhadas na rede de serviços.
Falemos um pouco sobre esses desafios:
Estigma e preconceitos
O estigma se manifesta por meio de palavras e expressões, de atitudes condizentes com quem reproduz esse tipo de discurso dotado de preconceitos, ou mesmo com atitudes vindas da própria pessoa (profissional, amigo ou familiar), que emitam sensações de menosprezo, pena e outras representando elementos de segregação e desprezo.
A educação e conscientização em relação aos transtornos mentais e seus mitos, o contato com outros portadores de transtornos e ações voltadas para o aumento da autoestima daquele em dificuldades, afim de que ele possa enfrenta-las, podem se tornar boas ferramentas de apoio dentro do processo no qual se constitui uma recuperação.
Dificuldade de adesão ao tratamento
A dificuldade de adesão aos tratamento é outro dos desafios enfrentados nessa relação entre atenção básica e saúde mental. Elementos como a falta de uma rede social de cuidado, a dificuldade em mudar estilos de vida, condições socioeconômicas e fatores culturais podem estar por trás dessa problemática.
Por esses motivos, faz-se importante ajudar a pessoa a dar sentido as mudanças de vida que estão sendo propostas, ter o apoio matricial em conjunto com os trabalhos da atenção básica, construir um PTS com ela valorizando a presença da família nesse planejamento e usar de uma linguagem acessível que permita a conscientização dessa pessoa sobre o que acontece e os porquês do que será feito.
A comunicação entre profissional e usuário
Embora seja clara a necessidade de uma boa comunicação em qualquer tipo de relacionamento, quando ela não existe no relacionamento entre profissional e usuário, dificuldades surgem e a falta de proximidade pode agrava-las ao longo do processo de recuperação.
A efetividade da comunicação na saúde tem implicações para ambos os lados. Entre os exemplos, a falta de adesão ao tratamento por parte da pessoa e a falta de empenho em querer conhecer a vida desse indivíduo como forma de melhorar e aprofundar os tratamentos por parte do profissional, são latentes.
Nesse sentido, tanto para membros da equipe de referência quanto para membros da equipe de apoio matricial, a boa comunicação e a criação de vínculos por meio dela deve ser algo considerado essencial para qualquer bom tratamento, integral e desconstrutor de barreiras.
Cuidados ao cuidador
Entre as tarefas de apoio das equipes de matriciamento, está os cuidados aos cuidadores da atenção básica, que acabam sofrendo pela carga de pressão e exigência colocada sobre eles em decorrência da multiplicidade de seus trabalhos.
O alto grau de estresse em lidar com diferentes demandas, a necessidade de planejar atividades fora dos seus escopos de formação, as dificuldades inerentes ao entendimento de questões subjetivas da psicologia, dentre outros desafios, fazem desse mais um desafio da relação saúde mental e atenção básica por meio do matriciamento.
Conversas, grupos de trabalho e outras medidas são necessárias para facilitar, quando os atendimentos não caminham como se espera, a vida desses profissionais que se dedicam e lidam constantemente com demandas, problemas e a necessidade de encontrar soluções.
Referência Bibliográfica: “Guia prático de matriciamento em saúde mental / Dulce Helena Chiaverini (Organizadora) … [et al.]. [Brasília, DF]: Ministério da Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, 2011.”
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Muito bom esse Blog, bem didático! Parabéns!
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Gostei muito desse blog
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Excelente conteúdo. Obrigada!
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Parabéns Pelo conteúdo a presentado sobre o matriciamento
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Até que enfim,uma ótima ação Pública de ajudar a mente humana.
Espero que realmente seja FEITO e ampliado estes momentos e projetos de resgate a nós.
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Muito bom aprofundar conhecimento e instrumentalizar as praticas
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No caso quando se trata de um deficiênte no qual os profissionais como médico, enfermagem, psicólogo, fisioterapeuta, nutricionista e assiste social qual seria o papel de cada um para tratar esse deficiente com dificuldade escola, dificuldade de controle fecal e agressivos?