As Oficinas Terapêuticas: Uma abordagem alternativa dos CAPS em favor da Saúde Mental

As oficinas terapêuticas, a reforma psiquiátrica e a criação dos CAPS

A história dos Centros de Atenção Psicossociais se inicia em consonância com o movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil, que inspirado na luta antimanicomial iniciada na Itália, em Trieste, tinha como principal objetivo dar fim ao modelo médico-asilar/manicomial.

A materialização desse novo modo de atenção no contexto nacional de assistência à saúde mental ocorre inicialmente por meio de experiências localizadas, como se daria no CAPS Luís da Rocha Cerqueira, no ano de 1987, em São Paulo; nos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) em Santos, no ano de 1989; e no CAPS Castelo, na cidade de Pelotas, em 1993.

Essas experiências se consolidariam, e a partir de 2000, seriam uniformizadas nos aspectos técnicos, administrativos e financeiros por meio de instrumentos normativos do Ministério da Saúde (Ministério da Saúde, 2004). 

Os CAPS trabalhariam, enquanto instituições representantes dos ideais da Reforma, de modo que a reinserção social do usuário se desse na mesma medida em que ferramentas para a resolução de suas dificuldades psicológicas fossem desenvolvidas.

O processo em si, como diz Saraceno (2003), caminharia em função da (re) construção de seu papel social e de suas relações com três eixos considerados fundamentais da vida, sendo estes seu habitat, seu meio social e seu trabalho, desempenhado, a princípio, dentro da própria instituição.

Nesse sentido, congregando tudo que foi dito, os CAPS seriam definidos como dispositivos comunitários e regionalizados, que oportunizariam um grau de assistência e de reabilitação psicossocial, seguindo os mesmos princípios, por meio do acesso ao trabalho, ao lazer, a educação, a cultura, ao exercício dos direitos civis e ao fortalecimento dos laços familiares e comunitários dos indivíduos em sofrimento mental (Campos e Furtado, 2006).

Dentro desse contexto, surgem então as oficinas, inicialmente instauradas na Itália em função da então vitoriosa experiência italiana, como um novo reflexo dos ideais construídos pela Reforma.

Estas, que dando contornos ainda mais expressivos às mudanças que a tal Reforma proporcionaria – deixando práticas agressivas e condenáveis do passado para trás, dentre outras coisas – desenvolver-se-iam sob a forma de atividades em que o centro seria, então, o indivíduo e não mais sua “patologia”.

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Essa nova maneira de pensar os usuários permitiu ás oficinas que se tornassem ferramentas valiosas de cuidado e reinserção social desses indivíduos, pois, mediante o trabalho e a expressão artística, fazendo de seus ambientes espaços de socialização e interação, a base para isso estaria construída.

Nelas, o sujeito conquistou liberdade para se expressar, sendo capaz de lidar com seus medos, inseguranças, bem como adquirir aprendizados e realizar a troca de experiências com outras pessoas.

Um exemplo claro disso se daria por meio do artesanato, que permitiria a evasão de sentimentos de seus participantes nos mais diversos sentidos.

Em fragmento, um especialista faz seu relato sobre sua experiência enquanto convidado, participante e observador de uma das atividades realizadas em oficina:

“A T.O. nos convidou a participar das atividades do grupo que ela coordenava, os usuários estavam confeccionando uma ‘colcha de retalhos’: eles desenhavam fatos de sua vida em retalhos de tecido com pincel e tinta de tecido.

Esta atividade compreende quatro sessões. Numa primeira, os usuários eram estimulados a exteriorizar seus sentimentos em relação à infância e pintar algo relacionado a ela.

Ao final deste dia, conversavam sobre o que haviam desenhado, pensado e lembrado sobre sua infância. Guardavam o material trabalhado e assim sucessivamente nos outros dias, com adolescência, família e o futuro.

Ao final, cada um tinha, pelo menos, quatro ‘retalhos’ de sua vida para fazer uma ‘colcha’, que foi costurada por todos, com a ajuda da artesã e da T.O.” (Ministério da Saúde, 2004).

Vê-se que a coordenadora, fazendo da oficina uma ferramenta a mobilizar os participantes a construírem materialmente alguma coisa, permitiria a estes também o verbalizar de suas vivências, possibilitando a construção de vínculos com os participantes ali presentes e também sua intervenção no processo de escuta e inclusão dos usuários.

Partindo do artesanato, como no exemplo dado, até o uso da musica, da arte, dos esportes e de tantos outros elementos possíveis de se constituírem como temas de oficinas terapêuticas, o usuário seria sempre o foco da atenção desenvolvida, tendo a opção de escolher ou não aquilo que deseja realizar, sabido o importante fato de que nada ali o estaria sendo imposto.

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Desse modo, constata-se nesses serviços o processo de consolidação de novas práticas em saúde mental, nas quais o sujeito em sofrimento psíquico, que antes tinha uma posição inativa e de exclusão, agora se insere num nível de participação, de trocas e de reconstrução constante de suas relações com o mundo e de seu cotidiano (Rauter, 2000).

Nessa perspectiva, as oficinas passariam a cumprir mais de um papel fundamental dentro dos CAPS: tanto como elementos terapêuticos, quanto como promotoras de reinserção social.

Suas ações, passando a envolver atividades que estimulam a produção da subjetividade, permitiriam o resgate da autonomia, a criação de produtos artísticos ou artesanais, o trabalho e a geração de renda, em benefício principal de apenas um grupo objetivo de pessoas: os próprios usuários. (Pinto, 2011).

O objetivo das oficinas terapêuticas

Em primeiro lugar, sabe-se que para que as oficinas tenham seu caráter terapêutico consolidado, faz-se necessário que pensa-las deva exigir um esforço de seus coordenadores no sentido de criarem e fortificarem conexões entre a produção psicológica, seus benefícios e os caminhos para se atingirem eles de maneira a congregar a realidade do próprio usuário.

Nesse sentido, as oficinas terapêuticas seriam como catalisadores da produção psíquica dos indivíduos envolvidos (Cedraz e Dimeinstein, 2005), possuindo uma função variável para cada usuário, dependendo de como o mesmo demonstre se relacionar com o material oferecido por elas.

Oficina de Carnaval no Caps Noraci Pedrosa. Foto: Pei Fon/ Secom Maceió

Utilizando-se dos elementos que os indivíduos trariam, o profissional deve ter a capacidade de escutar e perceber o que eles estão querendo dizer. Há aqueles que podem se comunicar pela escrita, pela arte, pela identificação, entre diversos outros elementos (Silva, 2015).

Se tratando ainda da função que exercem os coordenadores das atividades – os profissionais multidisciplinares que acompanham de perto o desenvolvimento do usuário – tem-se que para muitos desses indivíduos as oficinas terapêuticas seriam, além da ação medicamentosa, seu único meio de tratamento.

A universalidade existiria, mas teria que ser observada com muito cuidado e em conjunto com outros dados, visto que cada indivíduo representaria um mundo só, formado por distintas necessidades e problematizações.

No final do processo, as oficinas devem promover a convivência, a socialização e a cidadania dos usuários. É necessário produzir espaços de interação fundamentais para a função que os CAPS buscam alcançar, com objetivos definidos e claros, e não somente acreditar que os usuários têm se beneficiado das oficinas porque essas ocupam o tempo com oficinas de diversos tipos (Silva, 2015).

A classificação das oficinas pelo Ministério da Saúde

Oficinas expressivas: espaços de expressão plástica (pintura, argila, desenho etc.), expressão corporal (dança, ginástica e técnicas teatrais), expressão verbal (poesia, contos, leitura e redação de texto, de peças teatrais, de letras de musicas), expressão musical (atividades musicais), fotografia, teatro.

Oficinas geradoras de renda: servem como um instrumento de geração de renda através do aprendizado de uma atividade específica, que poder ser igual ou diferente da profissão do usuário. As oficinas geradoras de renda podem ser de: culinária, marcenaria, costura, fotocópias, fabricação de velas, venda de livro, artesanato em geral, cerâmica, bijuteria, brechó, etc.

Oficinas de alfabetização: esse tipo de oficina contribui para aqueles usuários que não tiveram acesso ou que não puderam permanecer na escola possam exercitar a escrita e a leitura, como recurso importante na (re) construção da cidadania.

(Fonte: Pinto, 2011)

Reflexões críticas a cerca dos CAPS e da execução das oficinas terapêuticas

Não é a simples existência de uma oficina que garante o fato de ela estar produzindo novas formas de vida; para ela ser terapêutica é necessário conectar-se com uma dimensão distinta da que habitualmente encontrávamos nos tempos anteriores aos da Reforma Psiquiátrica (Cedraz e Dimeinstain, 2005).

Apesar de serem uma ferramenta muito importante para o usuário, possibilitando a esse a expressão de sensações e sentimentos, assim como grande proximidade em relação aos profissionais da saúde e também a outros indivíduos utilizando os serviços, tem-se que nem tudo, em todos os CAPS espalhados pelo Brasil, ocorre da forma como deveria.

Um dos aspectos que se faz necessário o levantamento diz respeito ao mau planejamento das atividades de oficinas, que de algo a ser realizado com objetivos terapêuticos bem estruturados, acaba sendo reduzido a momentos de simples ocupação de tempo por parte dos indivíduos ali presentes.

Outro aspecto de bastante relevância diz respeito ao fato de que ainda está presente em alguns serviços a ideia de que se deve partir dos técnicos e profissionais exclusivamente a iniciativa de realização de qualquer que seja a atividade, enquanto que os usuários ocupam o lugar de expectadores ou consumidores das propostas, mantendo as relações de hierarquia, contrapondo-se essa atitude aos princípios reformadores.

A ideia fundamental das oficinas seria a de construir de forma coletiva , olhando para as angústias e para a vida dos indivíduos usuários, espaços de desenvolvimento e recuperação psicossocial.

Um ponto interessante para esse debate se reflete também no fato observado de que valores conservadores construídos como ”certos” na sociedade seriam transmitidos para o usuário como a forma mais adequada de se ser e de se agir, sem que se pensassem sobre determinados assuntos.

Por exemplo: fala-se sobre sexualidade, abordando apenas a heterossexualidade; fala-se sobre autonomia, enfatizando apenas a capacidade de se manter uma casa limpa e organizada (Cedraz e Dimeinstain, 2005).

Nesse sentido – e aqui aparece a problemática – parece se perder um pouco a ideia e a  essência do que significaria a produção da autonomia do usuário que, sendo um dos objetivos principais dos CAPS, segundo o Ministério da Saúde (2004), ficaria em alguns casos mais distante do que deveria.

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Por fim, têm-se também os casos em que se entendem mal as queixas dos usuários, como se estas fossem recorrentemente reflexos de suas dificuldades psicológicas, mesmo quando o usuário vive em contexto em que tais queixas seriam bastante compreensíveis.

Cedraz e Dimeinstain (2005) nos mostram em relato de campo o exemplo de uma mãe, que dizendo sentir muita angústia e insônia por conta do envolvimento de seus filhos com o comércio ilegal de drogas, ao ser abordada por um dos coordenadores da oficina em desenvolvimento, teria sido orientada por ele a procurar novamente a psiquiatra, tendo lhe dito que sua situação poderia estar vinculada a baixa quantidade de medicamentos ansiolíticos, algo absolutamente contrário as demandas da própria instituição CAPS.

São práticas que precisam ser constantemente analisadas, assim como o preparo dos profissionais, a infraestrutura dos espaços dos CAPS, dentre outras coisas também muito importantes.

As oficinas terapêuticas como ferramentas de inserção e recuperação do usuário

Dadas às discussões e informações levantadas, conclui-se que as oficinas terapêuticas representariam um importante reflexo dos ideais levantados pela Reforma Psiquiátrica, principalmente no que concerne aquele que coloca o indivíduo e sua experiência no centro, fazendo dele o foco dos tratamentos.

As oficinas terapêuticas seriam mecanismos em que os pacientes, através da manipulação de objetos, de recursos artísticos, artesanais, dinâmicas de grupo, jogos, teatros, entre outros, e acima de tudo através da socialização com outros pacientes podem trabalhar seus conteúdos emocionais, expressando-os (Silva, 2015).

Propiciando um espaço para autonomia e a politização dos indivíduos, as oficinas são reconhecidas por permitir a aliança entre muitos aspectos necessários para a recuperação psicossocial dos indivíduos. Os CAPS se beneficiariam enormemente de suas produções, sempre que bem estruturadas.

Nesse sentido, além do bom preparo de toda a equipe multidisciplinar, tem-se que o espaço das oficinas terapêuticas precisa ter seus objetivos bem traçados, porque além de um momento de fala e voz para os pacientes com transtornos mentais, as oficinas precisam fazer sentido para a realidade de cada um, ajudando-os a construir novas trajetórias, na mesma medida em que desconstrói também preconceitos e estigmas.


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17 Comentários


    1. Bom dia, Valéria! Tudo bem com você?

      Que satisfação te ouvir! Você e as pessoas que trabalham ao seu lado é que constroem esse apoio. Vocês merecem aplausos! Muito obrigado pelo seu comentário, ele vale muito pra todos nós!

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      1. Ola Pietro, trabalho na area de enfermagem de um CAPS1 que esta iniciando seus trabalhos, Em Ibertioga-MG. gostaria de saber mais a respeito. vou deixando meu email pra contato:souzaallyson144@gmail.com

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  1. TODOS OS ARTIGOS SÃO ÓTIMOS, ESTOU APRENDENDO MUITO.
    SOU ASSISTENTE SOCIAL CAPS II
    TENHO APROVEITADO TUDO, INCLUSIVE AS MÚSICAS… TUDO !!!
    MUITO OBRIGADO

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  2. Estou amando tudo !
    🤗
    Hj trabalho em um caps AD.
    Mas,fui cuidadora na saúde mental e educadora social também na saúde mental e estou amando seus artigos, vídeos,livros !

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  3. Olá Pablo, gostei bastante do seu artigo e gostaria de referencia-lo em meu projeto, se possível me informe a data de publicação. Desde já, agradeço!

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    1. Boa noite. Tenho interesse em atuar como redutor de danos. Preciso muito aprender mais sobre o assu

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  4. Boa tarde trabalhei durante 12 anos em caps III,hoje trabalho na residencia terapêutica ,amo meu trabalho o que posso desenvolver com eles, aprendo muito com eles , eles merecem carinho ,afeto ,compreensao e é o que procuro dar …

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  5. Muito interessante ler sobre as oficinas terapêuticas, eu trabalho a 16 anos com oficina de artesanatos, em biscuit , contos, culinária e teatro, muito produtivo na recuperação dos pacientes. Há 2 anos estou no CAPS IJ da minha cidade.
    Sou agente comunitária readaptada e trabalho só com oficinas.

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  6. Bom dia Pablo. Ótimo artigo, sou psicólogo no CAPS II Ademar de Assis em Mantena – MG e Referência Técnica em Saúde Mental da Micro. Tenho que iniciar uma oficina terapêutica e seu artigo foi de muita ajuda, se tiver mais material relacionado ficaria muito feliz em receber. Meu e-mail é wesleyalvesoliveira.wao@gmail.com

    Muito agradecido.

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  7. Parabéns acolha os filhos de Maria.. muito família tira do sobrenome vira mendingo..já até são mendingos estão fora da lei não exerce cidadania tratados igual animal.. ninguém houve isso eu sei como é tenho uma filha assim foi embora virou mendinga..não pude fazer nada acolha os muito vira mendingo..

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  8. Olá, sou Assistente Social, e iniciei minha atuação recentemente em um CAPS I, teria materiais do Serviço Social nos CAPS para me enviar?

    Grata.

    Cleo Barros

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  9. Oi bom dia. Sou Maria Rita nutricionista e trabalho no Caps I em Pedro Canário – ES. Adorei a reportagem. Gostaria muito que mantivesse contato, pois é de grande valia a experiência.

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