Cuidar é Libertar: o 18 de Maio e o Grito por Liberdade na Luta Antimanicomial

Cuidar é Libertar: o 18 de Maio e o Grito por Liberdade na Luta Antimanicomial

 

O Surgimento da Luta Antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica Brasileira

O dia 18 de maio é marcado no Brasil como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, uma data que remete à defesa dos direitos das pessoas com sofrimento psíquico e à construção de uma sociedade sem manicômios. Essa luta tem raízes na Reforma Psiquiátrica Brasileira e na mobilização de profissionais de saúde, usuárias, usuários, familiares e movimentos sociais que denunciaram os abusos, torturas e violências cometidos em instituições psiquiátricas e reivindicaram um modelo de cuidado em liberdade. Apesar dos avanços conquistados, sempre irão existir desafios significativos para sustentar uma política de saúde mental baseada no respeito, na inclusão e na superação do modelo manicomial.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira teve início nos anos 1970 e ganhou força na década de 1980 com o Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental. Inspirada por experiências internacionais como a Psiquiatria Democrática Italiana, especialmente as práticas de desinstitucionalização promovidas por Franco Basaglia em Trieste, o Brasil iniciou um processo de substituição dos hospitais psiquiátricos por dispositivos comunitários de cuidado em saúde mental.

A consolidação desse movimento resultou na aprovação da Lei 10.216/2001, conhecida como Lei Paulo Delgado ou Lei da Reforma, que estabeleceu diretrizes para a política de saúde mental, priorizando o tratamento em liberdade e a redução das internações psiquiátricas prolongadas. A Lei 10.216 que estabeleceu diretrizes para a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redirecionou o modelo assistencial brasileiro em direção ao cuidado em liberdade.

A partir da aprovação da lei, houve um avanço na criação e implantação de dispositivos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Consultórios na Rua e de outras estratégias voltadas para a reinserção social das pessoas com sofrimento psíquico, reforçando uma rede de atenção psicossocial pautada na lógica territorial, interdisciplinar e centrada na singularidade do sujeito.

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Contudo, a luta antimanicomial continua enfrentando obstáculos, como a permanência de hospitais psiquiátricos em funcionamento, a insuficiência de recursos financeiros e humanos e os retrocessos político-institucionais que ameaçam os princípios da reforma, além do estigma ainda presente na sociedade em relação à saúde mental.

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O Cuidado em Liberdade e Experiências Exitosas na Saúde Mental

O princípio do cuidado em liberdade constitui o eixo estruturante e orienta a política de saúde mental no Brasil, promovendo um modelo assistencial que valoriza a autonomia, a cidadania e a dignidade das usuárias e dos usuários. Trata-se de um modelo que aposta no vínculo, na escuta qualificada e no reconhecimento das potências subjetivas, rompendo com a lógica da exclusão e do enclausuramento.

Tal modelo se materializa em diversas iniciativas exitosas que demonstram a potência da não exclusão social e do cuidado territorializado. Essas diversas práticas demonstram a eficácia dessa abordagem: iniciativas de arte e cultura, música, teatro, geração de renda e inclusão produtiva, comunicação comunitária e coletivos carnavalescos que promovem espaços de cuidado e expressão que vão além do espaço clínico tradicional.

A seguir, destaco algumas dessas experiências, vivências, projetos, coletivos e grupos que surgiram dessa necessidade de mudança do modelo hospitalocêntrico e manicomial do cuidado e da resistência de populações vulnerabilizadas que, como sempre costumo pontuar, não são “as minorias”, juntas, são “a maioria” e que devem mostrar toda sua força e potencialidades.

Arte e Saúde Mental

A arte tem se mostrado uma ferramenta fundamental no cuidado em saúde mental, promovendo a expressão subjetiva, a autoestima e a integração social de usuárias e usuários. Projetos como oficinas de teatro, pintura, música e literatura nos CAPS e em coletivos culturais têm possibilitado a reconstrução de identidades e a ressignificação das histórias de vida.

O Teatro do Oprimido, criado pelo dramaturgo Augusto Boal, também tem sido utilizado como uma ferramenta de empoderamento e crítica social. Um exemplo notável é o Grupo “Pirei na Cenna”, criado em 1997, pela psicopedagoga, atriz e autora Claudia Simone de Oliveira, no município de Niterói-RJ, que utiliza o Teatro do Oprimido como forma de expressão e resistência na luta antimanicomial, dando voz às vivências das usuárias e usuários da rede de saúde mental, seus familiares e simpatizantes do movimento da Luta Antimanicomial, para esta e demais pautas que permeiam nossa sociedade machista, cisheteronormativa, patriarcal, colonialista e racista.

Grupo “Pirei na Cenna”. Foto: Acervo de Claudio Gruber Mann

Música e Saúde Mental

A música tem um papel essencial na reinserção social e na promoção do bem-estar das pessoas com sofrimento psíquico. Experiências como os “Cancioneiros do IPUB”, um coletivo musical fundado em 1996 na cidade do Rio de Janeiro, pelo musicoterapeuta Vandré Vidal, que reúne usuárias, usuários e profissionais da rede de saúde mental para expressar suas vivências por meio da música. Outro exemplo é a banda “Harmonia Enlouquece”, criada no final do ano 2.000, fruto de uma oficina coordenada pelo psicólogo e musicoterapeuta Sidnei Martins Dantas, no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ), e que transforma temas relacionados à loucura e à saúde mental em um repertório crítico e poético.

Coletivo “Cancioneiros do IPUB” Foto: Acervo de Claudio Gruber Mann

Os dois grupos demonstram a força da arte no processo de reabilitação psicossocial e como a música pode ser ferramenta de elaboração do sofrimento, de mobilização coletiva e de crítica social.

Geração de Renda e Inclusão Social

A inclusão produtiva é um dos pilares do cuidado em liberdade, proporcionando um resgate da cidadania. Cooperativas sociais formadas por usuárias e usuários dos serviços de saúde mental têm demonstrado a viabilidade da Economia Solidária como estratégia terapêutica e emancipatória.

Iniciativa como a “Cooperativa da Praia Vermelha”, criada em 1997 no Instituto Municipal Philippe Pinel (IMPP), no Rio de Janeiro é um exemplo de como o trabalho pode ser uma ferramenta de reinserção social e desconstrução do estigma da loucura. A Oficina de Papel Artesanal foi criada em 2000, tendo como propósito atender a necessidade de diversificar as atividades da Cooperativa da Praia Vermelha (projeto de geração de renda do IMPP, na área de alimentos) e logo se transformou em uma grife conhecida como Papel Pinel, coordenada pela psicóloga Esther Marco Wenna.

Outro exemplo significativo é a “Geração POA”, um projeto de geração de renda em Porto Alegre que, desde sua criação em 1996, tem promovido a autonomia financeira de usuárias e usuários da rede de saúde mental por meio de atividades produtivas e artesanais, incentivando a participação ativa na economia local e ampliando a visibilidade da luta antimanicomial.

Todos estes coletivos demonstram o potencial terapêutico da Economia Solidária, ao promoverem autonomia financeira e ressignificação da identidade dos sujeitos.

Carnaval e Luta Antimanicomial

Os coletivos carnavalescos também se tornaram um importante espaço de resistência e celebração da luta antimanicomial. Blocos como o “Tá Pirando, Pirado, Pirou!”, fundado em 2004, por um pequeno grupo de usuárias, usuários, familiares e profissionais da rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro, além de moradores do entorno da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Botafogo, e simpatizantes da Reforma Psiquiátrica, e “Loucura Suburbana”, criado em 2001, como parte do processo de desconstrução do modelo asilar do Instituto Municipal Nise da Silveira, levam às ruas a mensagem da inclusão e da necessidade de garantir direitos às pessoas com sofrimento psíquico.

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Através da música e da arte, esses blocos promovem a desconstrução do preconceito e reforçam a importância do cuidado em liberdade, bem como a importância da ocupação dos espaços nos territórios e na sociedade.

TV Pinel – Comunicação e Saúde Mental

A TV Pinel, criada em 1996 no Instituto Municipal Philippe Pinel, no Rio de Janeiro, foi um projeto inovador que busca promover a visibilidade da luta antimanicomial por meio da produção audiovisual. Com a participação ativa de usuárias e usuários da saúde mental, a TV Pinel documentava eventos, debates e atividades culturais, ampliando a voz das pessoas em sofrimento psíquico e desmistificando os estigmas sobre a loucura. Além disso, o projeto tem um importante papel na formação de profissionais da saúde mental e na construção de uma narrativa coletiva sobre o direito ao cuidado em liberdade.

 

A Luta Antimanicomial e Outras Pautas Sociais

A luta antimanicomial não pode ser isolada de outras lutas sociais, especialmente aquelas que envolvem populações vulnerabilizadas. A interseccionalidade entre saúde mental, direitos humanos, desigualdade racial, gênero e outros importantes marcadores sociais é essencial para avançar em políticas públicas mais eficazes e não excludentes.

A população negra, os povos originários, a comunidade LGBTQIAPN+ e pessoas em situação de rua são grupos historicamente marginalizados que enfrentam um risco maior de violências institucionais e manicomialização. O racismo estrutural, a LGBTQIAPN+fobia e a desigualdade social impactam diretamente a saúde mental dessas populações, reforçando a necessidade de políticas públicas intersetoriais que combatam a exclusão e promovam o cuidado integral. Sem o reconhecimento dessas intersecções, a luta antimanicomial pode acabar reproduzindo desigualdades estruturais.

Dessa forma, a articulação com movimentos sociais e redes de apoio comunitárias é imprescindível para garantir que o direito ao cuidado em liberdade seja uma realidade para todas, todes e todos.

Seguindo com as lutas…

O Dia Nacional da Luta Antimanicomial é uma data de resistência e reflexão sobre os desafios e avanços da política de saúde mental no Brasil. A Reforma Psiquiátrica proporcionou conquistas importantes, mas a ameaça de retrocessos exige a manutenção da mobilização social e da defesa intransigente dos direitos das pessoas em sofrimento psíquico. Este dia é muito mais do que uma data no calendário: é uma convocação à sociedade para que defenda os direitos das pessoas com sofrimento psíquico e resista aos retrocessos que, constantemente, ameaçam as conquistas da Reforma Psiquiátrica.

A experiência brasileira, sustentada no cuidado em liberdade, demonstra que é possível construir redes de cuidado potentes, afetivas e transformadoras — baseadas na arte, música, teatro, trabalho, território e coletividade — demonstra que é possível construir um modelo de atenção psicossocial que respeite a dignidade e a autonomia das usuárias e dos usuários. No entanto, essa luta só será completa quando incorporar outras pautas e garantir a inclusão de todas as populações vulnerabilizadas na construção de uma sociedade mais justa e solidária.

Algumas figuras marcaram a história da luta antimanicomial no Brasil. Nise da Silveira foi uma pioneira na humanização do cuidado psiquiátrico, utilizando a arte como ferramenta terapêutica e promovendo a inclusão de pessoas em sofrimento psíquico. Seu legado segue vivo em instituições como o Museu de Imagens do Inconsciente. Já Dona Ivone Lara, além de ser um ícone do Samba, também foi Enfermeira e Assistente Social e contribuiu muito para a desestigmatização da loucura por meio da música e da cultura popular.

Além delas, não podemos deixar de citar Arthur Bispo do Rosário, Estamira, Estela do Patrocínio, Domingos Sávio, Maria do Socorro, David Capistrano, Fernando Diniz, Profeta Gentileza, Torquato Neto, dentre tantas e tantos outros que nos antecederam e se tornaram símbolo da luta antimanicomial, antirracista, antifascista, antimachista, antiLGBTQIAPN+fóbica e contra todo tipo de opressão, transformando o cuidar da saúde mental mais humanizado, respeitoso e digno.  Seus nomes serão lembrados e eternizados por cada uma e cada um de nós que seguimos nos caminhos trilhados por quem deu os primeiros passos.

Como bem afirmou Dra. Nise da Silveira, “é preciso substituir o medo pelo respeito, e a exclusão pela convivência”. E como cantava nossa Dama do Samba, Dona Ivone Lara, “o amor é remédio, é cura, é luz”.

Que cada 18 de maio nos lembre que o cuidado é sempre mais potente quando nasce da liberdade — e que liberdade sem cuidado não é libertação. “Nenhum passo atrás, manicômios nunca mais”!!!

Convido a todas, todes e todos a deixarem nos comentários deste texto breve relatos das experiências exitosas no cuidado em liberdade na saúde mental de seu município para que nos lembremos que juntes, somos mais fortes!

 

Referências

AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.

BRASIL. Ministério da Saúde. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde, 2001.

__________. Ministério da Saúde. Caminhos da Reforma Psiquiátrica no Brasil: a institucionalização da política nacional de saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.

__________. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Mental. Brasília: Ministério da Saúde, 2023.

DELGADO, Paulo G. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Diário Oficial da União, 2001.

ROTELLI, Franco; LEONARDIS, Ornella; MAURI, Domenico. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001.

SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Museu de Imagens do Inconsciente, 1992.

WHO – WORLD HEALTH ORGANIZATION. Guidance on community mental health services: promoting person-centred and rights-based approaches. Genebra: World Health Organization, 2021.

YASUI, Simone. Clínica e política: uma discussão sobre o modelo de atenção em saúde mental. São Paulo: Hucitec, 2010.

 

LINKS DOS PROJETOS E COLETIVOS CITADOS:

– Cancioneiros do IPUB – https://www.instagram.com/cancioneirosdoipub

– Geração POA – https://www.instagram.com/geracaopoa/#

– Grupo de Teatro do Oprimido Pirei na Cenna – https://www.ctorio.org.br/home/tag/pirei-na-cenna

– Harmonia Enlouquece – https://harmoniaenlouquece.org.br

– Loucura Suburbana – https://www.loucurasuburbana.org/historia

– Papel Pinel – https://cirandas.net/papelpinel

– Tá Pirando, Pirado, Pirou – https://tapirando.org.br

– TV Pinel – https://www.facebook.com/tvpinel

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